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No texto anterior, discutimos o ensino no âmbito de seu currículo formal, isto é, de seus programas e matérias. Destacamos rapidamente dois contextos históricos que parecem ter impregnado a escola atual de valores no mínimo questionáveis. Com este texto, pretendemos aprofundar a discussão trazendo o outro lado da moeda.

Se antes nos detemos no que a escola apresenta como programa, agora discutiremos o que ela esconde ou, melhor, o que se esconde nela. O currículo, composto entre o declarado e o oculto, nada mais é que uma normatização dos saberes. É uma escolha de assuntos e posturas regida por uma determinada visão de mundo, que, através de uma batalha, se instaura como saber no interior da prática escolar. O que de fato opera silenciosamente sob os programas de ensino?

O currículo oculto é o que supõe o ensino do que está para além dos conhecimentos objetivos, isto é, o que envolve fundamentalmente o aprendizado de valores. Convém chamá-lo de oculto, afinal as crianças não tem formalmente uma aula de como se sociabilizar, mas este aprendizado se dá como vivência e está necessariamente implícito no cotidiano da escola.

Não é nossa intenção transformar o currículo oculto numa espécie de bode expiatório. A relação intersubjetiva carrega necessariamente uma intenção e a influência se dá naturalmente. Exatamente por este motivo nos parece importante refletir o quê se esconde em nossas escolas por sob os véus do democrático. Que o meio escolar, o professor, a relação e o método influenciam na construção dos valores não há dúvida! Queremos é perceber quais são estes mecanismos operando silenciosamente e perguntar se os valores que propõem são desejáveis.

É uma questão difícil de ser trabalhada com generalidades, pois cada escola tem um perfil. Mas vamos à análise de um perfil padrão, que unifique, na medida do possível, alguns pontos comuns de nossas escolas.

O que o espaço físico da escola diz ao aluno? Ao entrar, portões e muros. Aqui ninguém entra e ninguém sai sem permissão. Nas salas de aula, carteiras enfileiradas. Deve-se sentar assim, deve-se sentar separado. Quando as salas têm janelas, geralmente estas têm grades. Não se deve olhar para fora. Muitas vezes, um pequeno palco para o mestre. O professor é superior. No caso das escolas com câmera, Somos vigiados?

De hora em hora, um ruído interrompe as atividades. O sinal sonoro indica que as funções serão trocadas, deve-se parar o que se está fazendo e seguir a ordem do momento. Pode ser a hora da entrada, o sinal separa os pontuais dos atrasados; ou do intervalo, o sinal abre e encerra uma pequena pausa para se alimentar; ou de ir embora, o sinal mais celebrado de todos.

Durante as aulas, o professor é a autoridade. Ele carrega o saber. Suas relações são de poder: exigem uma conduta restrita de comportamentos, constrangem o que não o agrada. Ele é a primeira representação do que é comportar-se bem. Ele regula a dinâmica da aula incentivando ou penalizando as atitudes dos pupilos. Ele é o ator de um monólogo disciplinar, onde o silêncio é fundamental. Ensinar a obedecer é um grande primeiro passo.

É intolerável o direito que se dá a si mesmo o educador autoritário de comportar-se como o proprietário da verdade de que apossa e do tempo para discorrer sobre ela. Para ele, quem escuta sequer tem tempo próprio, pois o tempo de quem escuta é o seu, é o tempo de sua fala. Sua fala, por isso mesmo, se dá num espaço silenciado e não num espaço com ou em silêncio. Ao contrário, o espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. (Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p.117)

Cartaz produzido na Editora Deriva em homegem ao escritor Ivan Illich e seu livro Sociedade Desescolarizada.

Cartaz produzido pela Editora Deriva em homenagem ao escritor Ivan Illich e seu livro Sociedade Desescolarizada.

Se as condições para a boa aula não forem alcançadas, desce à sala o soberano em pessoa, o diretor. Ele, além de carregar o saber, tem a capacidade de punir como ninguém. Não só alertando os pais, mas olhando no fundo dos olhos de seus alunos. Cara a cara. Poucos insistirão em resistir a tanta desaprovação.

O aluno que resiste a este obrigatório processo diário de ser educado deve ainda passar por teste mais objetivos. As provas de disciplina medem a capacidade de decorar, a capacidade de ficar sentado por horas a fio, a capacidade de agir sob stress e também alguns conteúdos aleatoriamente escolhidos. Trata-se de um grande mecanismo de exclusão: quem vai mal, é obrigado a repetir todo o processo, um verdadeiro atraso de vida, afinal, ninguém quer ficar na escola um ano a mais.

Com o perdão do exagero eventual, descrevemos alguns elementos que compõe o currículo oculto de nossas escolas. Poderíamos realizar o rico exercício de comparar as escolas que se encaixam perfeitamente neste molde com as prisões. O resultado não seria tão surpreendente assim, ambas são instituições disciplinares que tem como objetivo o controle. A escola dedica-se inteiramente a produzir corpos dóceis prontos para se sujeitar.

O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. (Michel Foucault, Vigiar e Punir, p. 164)

Cabe-nos destacar que estes problemas não dizem respeito apenas à escola. A instituição escolar é como a engrenagem de uma máquina muitas vezes maior. A educação é só mais um círculo de uma sociedade estruturada pelas relações de poder. A escola não criará interesse enquanto investir no poder, apenas quando aprender a somar-se ao aluno, unindo-se ao seu projeto de potência e o auxiliando a intensificar seus caminhos. Se falarmos em educar para autonomia, é sinceramente melhor começarmos do zero, pouco sabemos sobre isso afinal. Temos feito precisamente o contrário.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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morganalua
10 anos atrás

Adorei! 🙂 “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”

Luc
Luc
10 anos atrás

educacionprohibida.com é um documentário feito pelos países de língua espanhola bastante interessante que fala sobre esse assunto. Super recomendado! 🙂

Carminho
Carminho
9 anos atrás

Esbarrei no seu blog estou maravilhada. Temas muito interessantes, textos “limpos” e de fácil compreenção!! Parabéns 🙂