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Depois do texto sobre a relação entre mente e corpo para Espinosa (veja aqui), gostaríamos de pensar um pouco sobre uma de suas mais importantes perguntas: “o que pode o corpo?”. Esta pergunta não foi diretamente formulada pelo filósofo, mas sim por um de seus principais comentadores: Deleuze.

Este é o grito de guerra de Espinosa: retornar ao corpo, repensar nossa relação com ele. Na verdade, esta pergunta é dupla: primeiro, qual é a estrutura de um corpo, e, segundo, dada esta estrutura, o que está em seu poder? Se ele não é passivo, se ele não é instrumento da alma nem mero objeto negligenciável, então cabe a nós refletir sobre qual o seu lugar dentro da filosofia e como nós podemos entendê-lo.

O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer”

– Espinosa – Ética III, Prop. 2

Esta pergunta precisa ser levada até suas últimas consequências: o que pode realmente um corpo? Podemos pensar em vários exemplos: alguns savantes são pessoas que possuem uma hiper capacidade de memorização e processamento de dados. Existem monges budistas capazes de aumentar conscientemente a sua temperatura corporal e resistência à dor. Ou até mesmo o exemplo clássico da mãe que levanta um ônibus para salvar seu bebê.

Tudo isso mostra que somos máquinas incríveis. Como costumam dizer que usamos apenas 2% do cérebro, nos arriscaríamos a dizer que usamos apenas 2% do corpo, porque simplesmente não sabemos ainda o que pode um corpo. Enquanto você lê, por exemplo, suas células se dividem, seu coração bate, seu pulmão se enche de ar. Há uma força em nós que está para muito além da mente consciente, tudo acontece em plena harmonia e nem ao menos nos damos conta disso.

La Plante, Nathalie Maquet

Nosso corpo dança um movimento ritmado. Mesmo o corpo parado dança: as veias pulsam, o coração dá o ritmo, os olhos piscam em contracanto, a melodia dos órgãos não é ouvida porque passamos a vida inteira imersos em sua sinfonia. E talvez esse seja o problema: nos esquecemos de nós mesmos. Não está na hora de nos procurarmos?

O corpo se esforça para tornar-se mais forte, mais apto a regenerar suas partes, de acordo com sua capacidade de transformação e relação plural com o mundo externo. A pele é limite que separa o homem do mundo que o cerca, mas vivemos desta troca com o mundo ao nosso redor. Quanto mais amplos seus modos de agir, quanto mais complexos os movimentos, maior serão suas afecções. Por ser muito complexo, o corpo humano é capaz de muitas coisas, por ser composto por várias partes ele é capaz de ser afetado de muitas formas e agir de muitas outras. Ou seja, o corpo é um leque de possibilidades. Mas atualmente ele está separado de sua capacidade de ser afetado, seus poros estão entupidos.

O que pode o nosso corpo? Que sensações nós já experimentamos, já que nos mexemos tanto? Ou será que já experimentamos o bastante? Nos encontramos primeiramente cansados demais para experimentar, e mesmo que não estivéssemos, já nos tornaram desconfiados demais para tentar!

Experimentar no sentido de apropriar-se do real, amor-fati, reaprender a não esconder-se do que nos acontece, não virar a cara. Saber experimentar não acontece em quantidade, mas em qualidade. Só será possível nos reapropriarmos do mundo quando nos reapropriarmos de nós mesmos. Muitos morrem sem jamais saber do que são capazes, sem jamais se surpreenderem com seu próprio corpo. “Então eu sabia/podia fazer isso?”. Sim, a única saída é o reinvestimento em si mesmo, retomar um cuidado de si.

Valorizar o corpo significa valorizar a vida que trazemos em nós, ela não é suporte para outras coisas, ela é tudo que temos. Podemos defini-la quantitativamente: ela vale o quanto pode. Exatamente, o corpo é definido exclusivamente por sua potência, conatus, e sempre efetua suas possibilidades ao máximo. Você não consegue, não tem coragem, não tem capacidade? Não podemos julgar, não podemos culpar, cada um sabe de si, mas temos alternativas, possibilidades.

A estrutura de um corpo é a composição da sua relação. O que pode um corpo é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão p. 147

O corpo é feito de um constante equilíbrio em desequilíbrio. Ele está em movimento, suas partes entram em relação centrífuga e centrípeta, mas ele mantém suas proporções e se transforma lentamente sem perder a identidade. O corpo está longe de ser uma unidade isolada, muito pelo contrário, ele depende das partes exteriores para manter-se, há uma intercoporeidade entre suas partes internas e outras partes externas.

Como podemos nos potencializar? A resposta de Espinosa é clara: na experimentação, nas relações. Encontrar um ambiente favorável, um clima favorável, uma companhia que convém, refeições que façam bem. A potência é o que define nosso corpo, ele é constantemente afetado, e estes afetos aumentam a potência, alegria, ou a diminuem, tristeza. Toda esta relação entre os indivíduos gera bons ou maus encontros. Eles aumentam ou diminuem nossa perfeição. Nos modificam e ao mesmo tempo aumentam nossa capacidade de sermos novamente afetados (veja mais aqui).

Por exemplo: a semente cresce na relação com a terra, ela cresce com o sol, ela troca gases com o ar. Se ela não brota, a culpa não é da semente, nem do solo. A relação é a base de tudo. Por que a semente não se compõe com a terra? Não sabemos, não cabe a nós julgar ou procurar culpados porque certamente é algo que aconteceu na relação, podemos apenas dizer que esta relação não floresceu. Mas quando dá certo, a semente passa a ser um canal, uma porta pela qual a terra e a água se transformam em uma majestosa árvore. As relações que a semente estabelece com a terra criam uma árvore, isto é o que pode o corpo da semente.

O que pode o corpo

Nathalie Maquet

Nossa capacidade de sermos preenchidos por afecções passivas não dizem nada de nossa essência, porque não somos causa dela, somos apenas o resultado de algo que nos acontece. Ou seja, paixões tristes não dizem nada sobre nossa essência. Já as paixões alegres dizem algo, falam do que há de comum entre os corpos. Tristes estamos separados de nossa essência, somos o que não somos; alegres tornamo-nos o que somos e adquirimos a capacidade de transmutação.

É o corpo, portanto, que se esforça para extrair encontros do acaso e, no encadeamento das paixões tristes, organizar os bons encontros, compor sua relações com relações que combinam diretamente com a sua, unir-se com aquilo que convém com ele por natureza, formar associação sensata entre os homens; tudo isso, de maneira a ser afetado pela alegria […] o homem livre e sensato identifica o esforço da razão com essa arte de organizar encontros, ou de formar uma totalidade nas relações que se compõem”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 180

As possibilidades são infinitas, ainda que o corpo seja passivo em muitas coisas e muitas coisas superem sua potência (veja mais aqui). Há apenas dois problemas: quando morremos cedo e não temos a chance de nos desenvolver, de nos apropriarmos de nós mesmos, de encontrar as melhores relações para nos potencializar; ou quando estamos submetidos aos fatores externos, quase sempre morais, que nos coagem e enfraquecem.

Aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma grande consciência de si, de Deus e das coisas. Assim, esforçamo-nos, nesta vida, sobretudo, para que o corpo de nossa infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas”

– Espinosa, Ética V, Prop. 39, esc.

Criar um corpo ético, não moral (ver aqui). Criar um corpo que experimenta e pode cada vez mais, um corpo que escolhe tudo o que lhe convém sempre da melhor maneira possível, um corpo feliz, satisfeito, realizado. Deixar definitivamente esta corporeidade moral, que julga, cultua, edipianiza, idealiza, esquece de si, se despreza, tem nojo, medo, vergonha. É possível abrir todo um novo plano de sensações novas dentro de nós, um novo topos, uma nova região.

O corpo visto como geografia, não como história. O corpo que experimenta, não que interpreta. Isso torna as possibilidades infinitas, cada nova experiência abre uma porta inédita, nunca antes explorada. Na relação, quando nos modificamos automaticamente, nossa essência se atualiza. Viver é estar em relação e criar organizações corporais totalmente novas, inéditas, impensadas, há pouco impossíveis, e muito melhores que estas que nos ofereceram.

Daí a importância da questão ética: Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, diz Espinosa. Ou seja: Nem mesmo sabemos de que afecções somos capazes, nem até onde vai nossa potência. Como poderíamos saber isso com antecedência? Desde o começo da nossa existência, somos necessariamente preenchidos por afecções passivas”

-Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 153

Só quem está cansado do corpo, ou tem um corpo (ou uma mente) doente, pode inventar outros mundos ou falar de espíritos (veja aqui). Para esquecer o corpo, ou menosprezá-lo, muitos se fingiram de filósofos e compactuaram para difamá-lo. Será então que a Ética de Espinosa não é toda uma maneira nova de pensar o corpo? Uma terapêutica dos afetos buscando aumentar o conhecimento e a perfeição do homem? Podemos até mesmo pensar em uma psicologia espinosana. O corpo que volta a experienciar o real é aquele também que pode libertar-se! Muitos filósofos se perguntaram como salvar a alma, e muitos padres se fingiram de filósofo para tentar salvar o homem. Mas quem salvará o corpo? Talvez Espinosa…

O impressionante é o corpo. Isso quer dizer o que? É uma reação de certos filósofos que dizem: escutem, parem com a alma, com a consciência, etc.  Vocês deveriam antes tentar ver um pouco, de início, o que pode o corpo. O que é…? Não sabem nem mesmo o que é um corpo e vêm falar da alma. Então não, é preciso ultrapassar”

– Deleuze, Curso sobre Spinoza

Texto da Série:

 

Ética

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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anisioluiz2008
10 anos atrás

Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.

anisioluiz2008
Reply to  Rafael Trindade
10 anos atrás

faço a minha parte. tnha uma ótima semana!

Devlin
Devlin
9 anos atrás

Estou usando este texto como fonte de pesquisa para o meu projeto de tcc. Como me ajudou, e que visão ampla da potencialização do corpo. Parabéns pela sensibilidade e olhar atento aos movimentos corporais!

Shirley Gundim
Shirley Gundim
9 anos atrás

muito bom o texto, o corpo ainda é massacrado pelas leis, dogmas e preconceitos… não o conhecemos…Sou Artista Plástica e trabalho na recuperação de crianças e adolescentes usuários de drogas com teatro e arte… e esse tema me fascina… “o corpo é o último que se perdoa”. Platão

Junior Bonfá
Junior Bonfá
9 anos atrás

Ótimo texto. Apenas para pontuar uma questão, quando você diz que caberia uma Psicologia espinozana, digo que já a temos. A abordagem Esquizoanalista esta ligada diretamente ao pensamento de Espinosa. Sobretudo através do próprio Deleuze. Abraço, parabéns pelo texto e o blog.

Daniela Maia
Daniela Maia
8 anos atrás

Belo texto. Gostei muito das suas pontuações a cerca do corpo e sua possibilidade. Eu acredito (como também se acredita em várias culturas orientais) no processo de se entender corpo sem dicotomias. Logo, o corpo saudável seria aquele que imerso em estados de experimentação consegue experimentar as várias camadas que o corpo pode oferecer. Sendo assim quando você coloca: “Só quem está cansado do corpo, ou tem um corpo (ou uma mente) doente, pode inventar outros mundos ou falar de espíritos (veja aqui). Para se esquecer do corpo, ou menosprezá-lo, muitos se fingiram de filósofos e compactuaram para denegri-lo.” Acredito… Ler mais >

Raisla Monique Chagas
8 anos atrás

Ótimo texto! É muito bom para pensar um corpo que pensa, que está no mundo com a psiqué, ou mesmo sendo um tipo de psiqué.

João Gabriel
8 anos atrás

Fabuloso! Abs

Barnabés Zoas
7 anos atrás

O que pode o Corpo? Poderá a alma escrever versos de suas andanças Em parceria com o corpo? … Poderá o corpo escrever Versos falando de sua marcas Mesmo que somente cravadas na alma? Pode o corpo pular os arames E ainda estrupiado Cantar novas manhãs? Pode ele fazer De todos os momentos Novas Manhãs? Ou será imprescindível, Que mesmo podendo, Ele espere a chegada da Nova Era ? Ele também deve poder Rogar murmúrios aos céus Quando novamente Estiver na cruz Ira Jogar de bola, tocar violão, amontoar impressões, Criar cascos nós pés E também será de seu direito… Ler mais >

Angela Bicalho
Angela Bicalho
Reply to  Barnabés Zoas
7 anos atrás

É bom ver que o corpo fala e nos dá dicas incríveis de nossa essência, de nossos descaminhos e de nosso equilíbrio em desequilíbrio !

Marcos Abraão
Marcos Abraão
7 anos atrás

Ótimo texto!

Mitsy Queiroz
Mitsy Queiroz
7 anos atrás

Se sugerisse uma primeira leitura para Espinosa, por onde começarias?