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De todos os temas que abordamos aqui, talvez o mais sutil seja a Ditadura da Verdade. Ela passa muitas vezes despercebida porque estamos de tal forma acostumados a pensar em termos de verdade/mentira que nunca paramos para questioná-la. Mas também, são quase 2500 anos de Ditadura da Verdade, desde Sócrates até os tempos de hoje.

Quem busca a verdade? A quem a verdade interessa? Talvez sejam perguntas estranhas de se fazer, mas não para nós. O problema não é o conhecimento, mas o ideal de verdade, a crença de que podemos iluminar o mundo com nossa razão, corrigi-lo, melhorá-lo, redimi-lo. O conhecimento e a verdade são sempre instrumentos, são sempre criações que estão a serviço de alguém.

“O mundo é o texto e nós só temos a interpretação”. Com estas palavras Nietzsche abre caminho para repensarmos o que é a verdade. A ilusão de que a razão pode penetrar na essência das coisas, separar verdade de mentira, é o que nos leva a considerar o erro como um mal. Através das ideias que nos passaram, adquirimos o hábito de pensarmos a verdade como um descobrimento, como se houvesse algo por trás da realidade. Temos medo da ilusão e buscamos desesperadamente a resposta correta, sem nos preocupar com o que isso significa para nós. Mas ilusão é pensar que podemos não nos iludir. A aparência não oculta a realidade, ela é a única realidade.

Esta busca pela verdade passou pela religião e pela metafísica, nos levando diretamente à racionalidade cientifica, hoje talvez nosso maior objeto de crença. O padre sempre diz a verdade, pelo menos é o que ele acredita. Suas ideias, sua visão de mundo, suas crenças têm o aval de Deus. E assim, quanto mais absurdo, mais ele deve ter fé, mas não sejamos hipócritas, há sempre um padre em nós que acredita estar dizendo a verdade em nome de algo superior.

O mesmo acontece com a ciência, ela não é capaz de explicar a realidade, apenas a interpreta tanto quanto qualquer outra área do saber humano. A má ciência se acha imperturbável, imóvel, imperecível, cria dogmas. Encontramos muitos cientistas crentes ainda hoje. O ideal é o modo de sustentar a vida fraca, não surpreende sacerdotes e cientistas se apropriarem dele para seu discurso. Mas todo bom pesquisador reconhece o caráter ilusório da ciência, sabe de seus limites, sabe da fragilidade de seu conhecimento. Cabe a nós dar uma direção a este conhecimento, que é colocá-lo a serviço da vida, da vida intensa, claro. O bom filósofo não despreza a ciência, se utiliza dela para seus fins.

A causa do niilismo é essa super abundância do racional. A arte pode ser um modelo mais apropriado para a vida do que a razão. Por isso precisamos de filósofos artistas: a arte reconhece e se orgulha de ser aparência. Pensar não revela, não descobre verdades, as cria. Queremos inventar novas verdades. A arte servindo-se da criação,  esta por sua vez está a serviço da intensificação da vida. Pensar não é contemplar, é criar novas realidades. Como se pode descobrir a verdade se ela sempre é criada?

Este espaço não está tão preocupado assim com a Razão (ou então não se chamaria Razão Inadequada), devemos deixar de lado esta luz e aprender a mergulhar nas sombras. Ter contato com nossos monstros pode nos fortalecer mais do que se preocupar em apenas apontar a lanterna da verdade em todas as direções. Nossos medos, monstros, inimigos nunca são tão grandes ao ponto de não podermos ser seus amigos.

Quando a mentira deixou de ser tão interessante quanto a verdade? Certamente não para nós. E quantos não dizem a verdade por covardia? Não queremos a verdade a qualquer custo, o pensamento autêntico encontra provas em si mesmo, encontra novos modos de vida que comportam novas verdades. Afinal, já está claro, existem verdades que não nos beneficiam, mas que nos obrigam a aceitá-las. Será que não nos livraremos destas regras? Deixe-nos em paz, não queremos a perfeição, somos criadores, não copiadores!

Se a vida é aparência então afirmar a vida significa afirmar a própria aparência. Verdades são ilusões que esquecemos como tais,  são mentiras provisórias que se envergonham de si mesmas. A Ditadura da Verdade nos mostra a impotência de criar, ela não passa de um suicídio passivo, de uma fuga da realidade, de um desejo de imutabilidade, de um ressentimento com o devir, com a vida, com tudo que este mundo tem a oferecer. Esta ditadura rechaça tudo que não consegue dominar e adestrar, mas verdades nômades perambulam, perigosas, tornando instável o conhecimento racional.

A verdade não deve ser descoberta ou encontrada, mas criada! Novos conhecimentos e novas verdades implicam em novos modos de vida, novas possibilidades. Sendo assim, não podemos reivindicar a posse dela,  mas ainda podemos ser honestos com nós mesmos. Você é capaz de suportar sua própria verdade?

Texto da série:

Regime Ditatorial de Valores

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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JOSE RICARDO CUNHA DE OLIVEIRA
JOSE RICARDO CUNHA DE OLIVEIRA
3 anos atrás

Bem! E se a Verdade for apenas um desarme para qualquer discussão? A Verdade não impõe nada. Ela apenas liberta qualquer um de ter que produzir provas do que for. Nada que não seja aceito é ou será, algum dia, Verdade. Por outro lado, qualquer coisa que for aceita por um, dois, dez, cem ou mil será Verdade até que alguém discorde. E… Se qualquer um concordar com o discordante, a Verdade, novamente, se estabelece e está discussão se encerra. A Verdade não serve para nada além de ter a capacidade/valor de encerrar qualquer relação, qualquer discussão, qualquer conflito pessoal… Ler mais >