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É simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida […], mas seu programa está em desacordo com o mundo inteiro, tanto o macrocosmo como o microcosmo. É absolutamente inexequível, todo o arranjo do Universo o contraria; podemos dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha no plano da ‘Criação’ “

– Freud, Mal-Estar na Civilização.

É sempre uma grande responsabilidade falar de um pensador tão influente quanto Freud, ainda mais quando entendemos que sua interpretação é a lente pela qual enxergamos nossa cultura. Mas se queremos fazer uma Contra-História da Psicologia, precisamos questionar este grande pensador. O diagnóstico de Europa edípica pode ser preciso, mas não vai muito além disso: no fundo ele apenas traduziu bem sua época. Se somos neuróticos, precisamos buscar saídas, criar portas se necessário! Seríamos ingratos se não tentássemos alçar voos para além da psicanálise, ou, neste caso, para além do mal-estar na civilização.

Existe em Freud, em toda a psicanálise, uma separação muito clara: Cultura versus Natureza, Homem versus Animal, Razão versus Instinto. Esta dicotomia é o que possibilita a Freud fazer a tensão entre o que seria bom, racional, evoluído, civilizado e o que atrapalharia o progresso da evolução, as pulsões, os instintos, a agressividade, os impulsos animais. Essa dicotomia romântica atravessa toda teoria psicanalítica e impede que nos apropriemos de nós mesmos. O Id é sempre visto como inimigo, reservatório das pulsões agressivas e adversário do desenvolvimento cultural. Deste modo,  resta à psicanálise o trabalho de reconciliar o homem com a cultura, ajudá-lo a amansar as pulsões que tanto o atrapalham a viver com outros homens. Psicanálise como adestramento.

O homem é um animal capturado pela cultura, debatendo-se na grades em que se encarcerou em busca de segurança. Sua dor maior é apostar na racionalidade e afastar-se de seus instintos outrora essenciais. Afastar-se da natureza ao invés de aliar-se a ela. Encontramos problemas e soluções na leitura de Mal-Estar na Civilização e pretendemos apresentá-los agora.

Enquanto membro da comunidade humana, e com o auxílio da técnica oriunda da ciência, proceder ao ataque à natureza, submetendo-a à vontade humana” (Freud). Apesar de suas pretensões (ou talvez ilusões), o homem não pode separar-se da natureza, ele não consegue saltar fora do mundo com sua racionalidade para em seguida dominá-lo. Lutar contra a natureza é lutar contra nós mesmos, o problema é o homem acreditar que pode separar-se da natureza sem perder o que há melhor de si. Dominar a natureza nos leva diretamente a dominar a nós mesmos. A renúncia das pulsões é sempre no sentido de desarmonizá-las e usá-las para nos enfraquecer. Freud opõe indivíduo e cultura (sempre a dialética…) e nos faz crer na importância da última no lugar da primeira, como se houvesse oposição. E como se essa falsa oposição não fosse no fim das contas ser usada contra nós.

A principal missão da cultura, sua raison d’être real, é nos defender contra a natureza […] a natureza se ergue contra nós”

– Freud

Freud interpreta a cultura como algo acima do ser humano, e que deve ser defendida a todo custo através da coerção e renúncia da pulsão. Vemos aí a criação de mais um totem, algo que está acima do homem, o criador servindo à criação. Por medo, receio, renunciamos a uma parte de nós, aceitamos a fraqueza em nós, afinal, a cultura nos pede para abdicar da força para podermos conviver, que outro animal faria isso? Com medo da natureza, terminamos com medo de nós mesmos.

Será que a psicanálise não quer sempre “purificar” um pouco o desejo? Um desejo horroroso, ou como diria Freud, “incestuoso e parricida”, pronto a manifestar-se de maneira destruidora, ruim (como se um animal não ficasse violento exatamente por ser privado de seus movimentos). Somos levados a temer a nós, há algo de cruel em nosso inconsciente, temos que tomar cuidado, fazer análise, nos precaver de nossos desejos, nossos pensamentos. A psicanálise procede como um filtro dos desejos, “este passa, este aqui não”, como diria Deleuze, é uma máquina de esmagamento de toda produção desejante.

Podemos dizer mais, e já cansamos de falar, a psicanálise maldiz o desejo! O desejo como falta, o desejo como dor, e pior, o desejo como aspiração a objetos impossíveis de se conquistar. Aí fica fácil chegar em um Lacan que diz: “somos todos castrados!”. Os psicanalistas dizem: “a causa de nossa infelicidade? Nosso desejo, que nunca será preenchido” (me parece bem conveniente com o modo consumista de vida que nos impõe). Somos princípio do prazer, mas seu programa é “absolutamente inexequível”, terminamos castrados, princípio de realidade… pois é, não chegaremos longe assim, afastados de nós mesmos…

Em busca de paz, com medo da dor, buscamos terapia. Queremos trocar, como disse Freud, “o sofrimento histérico por uma infelicidade comum”. O diagnóstico: pulsões destrutivas que não condizem com a cultura racional e culta de nossos tempos. Receita: fortalecimento do Ego. E também uma boa dose de dialética fazendo a síntese entre Id e Superego. Sempre um meio termo, uma vida de poucas intensidades, cheia de cuidados para não despertar a fera dentro de nós. Uma vida de entorpecimentos através da religião, das drogas, da arte…. Todas usadas como um recurso para impedir o homem de sair do lugar. Seguimos consumindo imagens, nos realizado por filmes, livros e seriados americanos.

E quando alguma coisa se revolta em nós, criamos uma tautologia para resolver a situação: somos agressivos porque temos uma Pulsão de Morte, temos uma Pulsão de Morte porque somos agressivos (veja mais aqui). Assim todos se satisfazem e seguem suas vidas. Ainda somos o camelo que leva às costas as leis e regulamentos sem questioná-los, sem colocá-los à prova, sem medir os seus valores.

Será este mal-estar necessário? Ou não seria uma nivelação por baixo? Freud nos mostra o preço que pagamos: “tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo […] a liberdade individual não é um bem cultural, ela era maior antes de qualquer civilização” (Freud). Submeter-se à cultura, ou seja, submeter o que há de mais real em nós: nossas pulsões, nossos desejos; ser um bom cidadão, um pai de família, um trabalhador prestativo e confiável. Enfim, colocar-se em segundo plano. É esse modelo que queremos? Temos que quebrar todos os ídolos, a cultura deve nos servir e não o contrário. Nossos desejos podem entrar em conflito com a cultura, mas talvez deva ser assim mesmo, esta civilização não tem a capacidade de nos tornar melhores. Encontrar novos caminhos é a chance de nos tornarmos cada vez mais plenos. Ao invés de renunciar às pulsões, propomos multiplicá-las!

Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocupar-se com a felicidade do indivíduo” (Freud). Esse pensamento só é possível porque nos ensinaram a repudiar uma parte de nós mesmos. Resultado: estamos fracos, doentes, impotentes. Opor pulsão e razão e submeter o instinto à cultura é matar a possibilidade de satisfação. Esta oposição é o que impede que a relação se dê de forma saudável. Aliar-se ao corpo é tirar o que há de melhor nele ao invés de matá-lo em vida. Ainda assim, não é necessário tomar o caminho oposto e ir contra a cultura, mas aprender a relacionar-se sem oposições maniqueístas, lidando com o externo e o interno e encontrando a melhor medida para a intensidade. 

É um completo contra senso dizer que para alcançarmos um nível superior devemos abdicar de uma parte de nós. Não passa de uma visão religiosa. Filtrar pulsões, purificar os instintos, extirpá-los se possível. Freud procura meios de se adaptar, lidar com isso… enquanto na verdade podemos procurar novos modos de vida, outras possibilidades de nos relacionarmos sem passar pela culpa e pela renúncia das pulsões. Encontrar uma cultura da criação, da possibilidade de crescimento, da potência de agir, do cultivo da felicidade: isto Freud não pensou!

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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jorio eduardo maia
10 anos atrás

Realmente a mente quer e deseja se sentir bem. Mas, muitas causas externas podem limitar este nosso desejo. No entanto, todos seres vivos tem um grau de potência e limites de realização. O ser humano como parte da natureza segue a ordem natural das coisas: tem potencial e limites.Não podemos desejar um universo feito inteiramente para nós porque isto é impossível. Vamos procurar modificar aquilo que podemos e ter coragem para aceitar as coisas que não podemos modificar. Não temos nada a reclamar da natureza; pelo contrário existimos devido a natureza que nos supre a toda hora de vida. Vamos… Ler mais >

Serelepe
Serelepe
9 anos atrás

“Uma vida de entorpecimentos através da religião, das drogas, da arte…. Todas usadas como um recurso para impedir o homem de sair do lugar. Seguimos consumindo imagens, nos realizado por filmes, livros e seriados americanos.”

A arte impede o homem de sair do lugar ? acho justamente o contrario. Liberar a potência humana é justamente aflorar seu lado artistico, em qualquer esfera.

Serelepe
Serelepe
9 anos atrás

Gostaria de fazer uma pergunta : Ao colocar o ID a frente do Ego, num mundo superpopuloso, não implica em gerar mais caos ? Visto que, inegavelmente, tempos impulsos e vontades “negativas”, no sentido que afeta outra pessoa, concordando ou não.

Serelepe
Serelepe
9 anos atrás

A castração social é tão negativa quanto um mundo livre de valores e imposições sociais. Ao meu ver, um equilibrio é necessário. É complicado falar em moral quando ela nunca é objetiva, porém, o ego deve ser acessado à medida em que nossas vontades passam dos limites, ou seja, podem afetar outras pessoas sem consentimento.

Mesmo limitando, isso seria injusto e coercitivo, considerando que nossa espécie tenha, também, impulsos violentos.

João
João
9 anos atrás

Uma coisa não ficou clara no texto: se desconstruir essa dicotomia de natureza/cultura é necessário para uma “plenitude”, por assim dizer, como se adaptariam pulsões como o incesto e a pedofilia?

João
João
9 anos atrás

Se adaptariam a esse pensamento, quero dizer…

Usui de Itamaracá
Usui de Itamaracá
9 anos atrás

Não li textos diretos de Freud, posso estar enganada, mas da forma que vejo a psicanálise, me parece diferente. É como se ao reconhecer pulsões que temos e nem sempre temos consciência, pudéssemos encontrar um outro caminho para liberar essas excitações de uma forma mais produtiva, criativa ou ‘sublimada’. Não vejo como uma tentativa de controle (embora o limite seja muito tênue nesse caso, porque é comum pacientes sentirem que é isso a terapia, controlar o impulso), mas uma tentativa de ressignificar nossos instintos para algo que nos deixe mais perto de um ‘viver pleno’, já que os instintos por… Ler mais >

Gato preto
Gato preto
8 anos atrás

Rafael, és um excelente autor com muitos textos brilhantes no “currículo” ! Todavia, quanto ás ideias e colocações deste, uma releitura do referido texto de Freud não nada cairia mal…

Gato preto
Gato preto
Reply to  Gato preto
8 anos atrás

Ou melhor, não cairia nada mal *

Stamato
Stamato
8 anos atrás

Ótimo texto. Contudo, eu diria que o modo com que Freud escreveu o Mal Estar na Civilização faz parte do problema cultural grave que havia na época em que ele foi escrito. O mais comum naquela época era uma agressividade realizada com aqueles que discordavam da cultura. A melhor forma era seguir normas e padrões daquela época. A melhor forma era baixar os possíveis conflitos, seja recalcando ou sublimando. Naquela época não havia uma grandiosa possibilidade de grupos distintos, seguirem seus desejos individuais. Hoje em dia, de fato, notamos a mudança enorme diante às normas da realidade contemporânea. Freud não… Ler mais >

Rafael Pontual
Rafael Pontual
8 anos atrás

Ótimo texto, parabéns! Acrescentaria que “Freud” é o extremo de uma ideologia dominante na nossa cultura (a Cultura Europeia, Norte-americana, enfim, Ocidental), que é a ideia, pretensiosamente universal, de que que temos uma “natureza”, o “inato”, e que precisa ser superada, modificada, aperfeiçoada, através da “cultura”, o desdobramento disso tá aí…

Mara
Mara
Reply to  Rafael Pontual
8 anos atrás

Não acho que a ideia do Freud seja essa. Mas, ele está morto, então não poderemos perguntar.