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A origem da palavra desejo é muito bonita. O verbo desidero vem da palavra sidero, que significa “relativo aos astros”, ou também “conjunto de estrelas” (ex: espaço sideral). Sendo assim, de-sidero significa “ignorar as estrelas”, ou também, “deixar de ver as estrelas”, em seu sentido astrológico. Se as estrelas na antiguidade eram o elo de ligação entre os homens e os deuses, então desejar significa ficar à deriva, à mercê, nas rodas da fortuna, deixar de guiar-se pelas mensagens divinas.

Apesar da bela origem, suas repercussões em nosso mundo são as mais nocivas. Desejo como falta, doença, incômodo, defeito, carência, vazio que busca preenchimento. Esta concepção atravessou os séculos: Platão, estoicos, cristãos, Hegel, Schopenhauer, Freud, Sartre. O mal-entendido do desejo, ou pelo menos, a má definição do conceito de desejo, pode ser considerada uma das mais cruéis heranças que o platonismo e o cristianismo nos legaram!

Por isso a importância de redefinir este conceito. O desejo como falta é uma mistificação nociva. Espinosa afirma que para nos tornarmos humanos temos que afirmar nossa natureza desejante. Mas como? Isso com certeza não significa ser inconsequente; os ignorantes tem uma visão errada do que significa desejar e dar vazão ao desejo, eles pensam que significa apenas não ter medidas. Mas este desejo vira busca interminável e desesperadora: o homem da imaginação, do primeiro gênero do conhecimento, investe no exterior: o desejo vira objeto. Ele perde o que há de mais íntimo em si para errar por entre ideais e utopias.

Este homem da imaginação se vê incompleto porque cria seus próprios senhores através de generalizações, a quem depois serve em busca de glórias e riquezas. Esta forma de desejar não é nada mais que a expressão da impotência do homem. Este desejo de ideais vira desejo de futuro, um futuro que nunca chega. E assim, abre-se um buraco no meio do homem chamado incompletude.

Nos acostumamos a ver o mundo a partir da perspectiva da falta, parece mais fácil ao impotente negar ao invés de afirmar. Para Espinosa, o desejo é mais que uma ideia, é uma força. O desejo é uma força que cria. Então a natureza, criando-se e reinventando-se o tempo todo é a manifestação máxima da natureza de cada um de nós. Por isso o homem deve apropriar-se do desejo, porque, no sentido espinosano, ele é revolucionário. É através dele que a mudança efetiva do real acontece, é mais que uma simples conservação, é uma força de expansão que ocorre impregnando a realidade de grandes acontecimentos. Espinosa, como bom filósofo da imanência, segue um caminho oposto:

O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira”

– Espinosa, Ética III, Definição dos Afetos 1

Esta é a grande lição de Espinosa: desejo é o esforço, a inclinação, por algo que julgamos útil para nossa conservação, ele é determinado com o fim de preservar o corpo e a mente. Não agimos por vontade, mas sim pela necessidade do desejo! Ele é nossa essência, ele é a causa eficiente de nossas paixões e ações.

Por se tratar de uma imanência absoluta, o conatus (ver aqui) de um indivíduo é modificado pelos encontros que faz. Ao se jogar no mundo, um ser não pode manter-se intacto, ele é necessariamente modificado pelos corpos à sua volta. O desejo é favorecido ou constrangido nestas relações, mas ele sempre se atualiza, preenchendo-se de alegria ou tristeza. O desejo é modificado pelo mundo à sua volta, se debruça sobre vários objetos, de acordo com a tristeza ou alegria que causam.

Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado e que, não raramente, são a tal ponto opostos entre si que o homem é arrastado para todos os lados e não sabe para onde se dirigir”

– Espinosa, Ética III, Definição dos afetos 1

Nesta busca pelo que é melhor, é impossível que a vida não nos preencha. O conatus é nossa essência que se atualiza, ele está sempre sendo preenchido, ou pela alegria de um bom encontro ou pela tristeza de um mau encontro, e assim é sempre a expressão máxima de nossa potência atual. Nada falta ao desejo porque ele é potência em ato, expressão da capacidade de afetar e ser afetado.

Vemos como Espinosa segue no sentido oposto: desejar não é estar doente, mas é a própria definição de saúde. O filósofo holandês também nega esta oposição entre a razão e a emoção. Para ele não pode haver concorrência entre razão e emoção,  um não age em detrimento do outro, um não age conquistando e enfraquecendo o outro, há sempre um agir em conjunto: o homem é mente e corpo. Pensar não significa parar de desejar, pelo contrário, pensar sempre se dá no e pelo desejo. A razão não nos retira do mundo nem nega o corpo; é o oposto, o toma como objeto de conhecimento para que possamos experimentá-lo melhor e com mais intensidade.

Espinosa nos mostra, na Ética, como tomamos parte de nossa produção desejante:

  1. Tristezas, vindas de fora, impõem desejos que não são nossos, e nos confundem. Já as alegrias passivas, que nos afetam também ao acaso, aumentam nossa potência, consequentemente, aumentam a possibilidade de pensar e de agir;
  2. Com o aumento do conatus, devido às paixões alegres, há a formação de noções comuns (pensamento racional), ideias adequadas entre o meu corpo e as coisas exteriores, conhecimento das relações que o corpo estabelece com outros corpos à sua volta;
  3. A Alegria ativa explica-se por si mesma, porque entende a correta conexão das coisas com o corpo, trata-se de uma ideia adequada, que se explica através da própria potência na natureza de agir segundo sua própria essência;
  4. À alegria passiva, somam-se outras alegrias ativas, e o desejo inadequado é substituído por desejos adequados.

Se o desejo for internamente determinado, por nossa própria natureza, então somos livres; se ele for determinado de fora, então nossa ação não é livre. Isso nos leva a pensar: quantos desejos não são nossos! Quantas vezes desejamos de maneira impotente, buscando aquilo que não queremos por termos ideias confusas e estarmos impotentes.

O desejo seleciona o melhor que pode estas paixões que aumentam sua potência, até chegar ao ponto onde ele se torna sua própria causa, liga-se a objetos e pessoas que quase sempre geram bons encontros. Esta é a virtude: potência de desejar o que lhe é próprio e que aumenta sua potência.

Todos os apetites ou desejos são paixões apenas à medida que provêm de ideias inadequadas, enquanto os mesmos desejos são considerados virtudes quando são suscitados ou gerados por ideias adequadas”

– Espinosa, Ética V, prop 4, esc

Nathalie Maquet

O desejo pode nascer da impotência, ou seja, ser determinado de fora, ou pode nascer de nossa própria essência e ser determinado de dentro. O que desejamos? Esta pergunta é muito importante, porque se não sabemos o que pode o corpo, também não sabemos o que deseja o corpo! Apenas o desejo potente é capaz de afetar de modo a sempre aumentar sua potência, e este é o esforço contínuo do conatus.

A grande beleza desta ideia é que o desejo, ao se tornar mais forte, torna-se também mais inteligente. Ele pode agir de maneira mais adequada. A razão não pode oferecer objetos ao desejo sem que este esteja disposto, forte, potente, para aceitá-los e se deixar afetar por eles. Quando isso torna-se possível, razão e desejo fundem-se, tornam-se um só. A razão torna-se afeto e os desejos se tornam racionais. Não no sentido de serem frios e calculistas, mas sempre no sentido de encontrarem aquilo que lhes afeta de modo a torná-lo sempre mais potente.

Espinosa nos ensina o caminho para uma razão corporal, afetiva, virtuosa, fruto das noções comuns entre o corpo e o mundo. Claro que com isso não suprimimos as paixões, mas elas passam a ser uma parte menor de nós mesmos, não deixamos nosso desejo flutuar ao acaso, nos tornamos parte ativa dos encontros e da vida.

Para concluir: o desejo não tem objeto porque ele é nossa essência, zona múltipla que quanto mais se desdobra, mais dobras cria em si mesmo, e mais amplia sua capacidade de afetar e ser afetado. A partir daí podemos dizer que o desejo busca sua identidade consigo mesmo, e sua autoexpansão. Seu fim não é exterior, o fim do desejo é ele mesmo. Um verbo intransitivo, sem objeto, que busca não apenas a sua autopreservação, mas também sua expressão, sua criação.

Texto da Série:

 

Ética

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Carol Freitas
Carol Freitas
8 anos atrás

que bonitas essas ideias… Então, não haveria aquela falta pulsante, mas uma pulsação desejante… Fiquei pensando nas crianças que desejam, interessam-se por se expandir… O corpo que cresce e vai expandindo também as possibilidades

Kaique Oliveira
Kaique Oliveira
7 anos atrás

Nossa, gostei muito das ideias abordadas pelo texto. Por aqui estou conhecendo mais Spinoza. Amei. Isso sim é uma ótima autoajuda, incrível!

douglas maurício zunino
douglas maurício zunino
7 anos atrás

essa educação contra o desejo, sempre foi ruim!
Viva Espinosa!

maria julieta bertazzi
6 anos atrás

belo texto, claro, gostoso de ler, amei !!!

Marcelo
Marcelo
3 anos atrás

A dificuldade: Nesta perspetiva,o legado platônico-cristão, fez da consciência uma espécie de parceira da animalidade que não consegue fundir razão e emoção para o corpo.

Ana Júlia da Costa
Ana Júlia da Costa
3 anos atrás

ótimo texto!! obrigada~