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“Nenhum homem que tem a infância atrás de si deveria esquecer-se da morte por um só minuto, tanto mais quanto a sua espera constante não só não envenena a vida, mas lhe empresta firmeza e claridade” Tolstói, carta à sua tia

“Que é isso?” – perguntou-se no leito de morte. Tolstói não soube responder, mas percebeu que seu irmão “sentia a própria passagem para o nada”. A morte de seu irmão e o seu sepultamento foram para Tolstói o primeiro encontro com a questão das questões. Eis um elemento central da literatura deste autor, sobre o qual relatavam ser obsessivo pelas questões da morte. Devemos partir de uma primeira ressalva: esta obsessão não era uma vontade de morte, mas uma vontade de entendê-la movida por um temor, um estranhamento, como relatou um de seus 15 filhos: “Embora durante trinta e cinco anos não deixasse de falar um só dia na morte, meu pai não a desejava”.

Tolstoi

Não nos espantamos, portanto, quando nos deparamos com a morte nos seus livros, ela é antes de tudo um elemento catártico. Como na morte do príncipe Andrei e a quase execução de Pierre em Guerra e Paz e a morte do irmão de Lévin em Anna Karênina, para citar duas de suas obras monumentais. Entretanto, é em A morte de Ivan Ilitch, uma pequena novela de 76 páginas, que topamos frente a frente com a questão da finitude, em alta concentração, sem desvios nem distrações.

Ivan – um burocrata cujo lema era ter uma vida “leve, agradável, alegre e sempre decente e aprovada pela sociedade” – morre. Eis a trama. O inevitável encontro do homem com a morte. Se inicialmente nos vemos afastado desse entediante juiz russo, preocupado com a escala social, cansando-se “porque as pessoas das suas relações aprovaram aquele partido”, somos obrigados a reconhecer por fim que ele tem conosco a maior das semelhanças: ele morre.

Mas a morte não de Ivan não é assim tão pontual. Quando ele finalmente chega ao cume de sua ascensão, isto é, ao encontrar o bom ordenado, as boas funções, a estima e jurisdição adequadas para a sua posição na sociedade, Ivan é acometido por dores sem causa. Um “rim móvel” talvez – diz-lhe um Doutor – Ou ainda, quem sabe, um mal no ceco.

Essa dor o consome, pouco a pouco, toda a vitalidade. Num determinado ponto, Ivan se dá conta que não está doente, está morrendo. Um grande juiz, um homem comme Il faut, esvaindo-se em dores abdominais sem explicação. As pessoas à sua volta o tratam como um doente em tratamento e isso o irrita profundamente. Neste momento, dois personagens se opõe colocando em cena um segundo elemento bastante recorrente nos livros de Tolstói.

De um lado, Prascóvia, a esposa que mente seu próprio pesar, finge acreditar que o marido não morrerá, ignorando o fato de sua morte porvir e representa, assim, toda a vida social da alta classe burocrata russa, que ignora as questões verdadeiramente importantes. Do outro, Guerrássim, o humilde copeiro, que cuida de Ivan como a um moribundo, que o trata como igual, que limpa as suas fezes, ele é o representante dos humildes trabalhadores, que na sua simplicidade são mais sábios. O ódio por sua esposa e o amor pelo copeiro são dois lados de uma mesma relação: a de Ivan com a sua finitude.

“O sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira por algum motivo aceita por todos, no sentido de que ele estava apenas doente e não moribundo, e que só devia ficar tranquilo e tratar-se, para que sucedesse algo muito bom. Mas ele sabia que, por mais coisas que fizessem, nada resultaria disso, além de sofrimentos ainda mais penosos e morte. E esta mentira atormentava-o, atormentava-o o fato de que não quisessem confessar aquilo que todos sabiam, ele mesmo inclusive, mas procurassem mentir perante ele sobra a sua terrível situação, e obrigassem-no a tomar parte naquela mentira. […] via que ninguém haveria de compadecer-se dele, porque ninguém queria sequer compreender a sua situação. Guerrássim era o único a compreendê-lo e a compadecer-se dele. E por isso Ivan sentia-se bem unicamente na presença de Guerrássim.”

Frederic Bazille, O hospital de campo improvisado,1865

Frederic Bazille, O hospital de campo improvisado,1865

Provido que a relação entre Ivan e Guerrassim não se dá fundamentalmente pelo diálogo, há por isso mesmo uma legitimidade entre compreensões de outro registro. A na atividade e alegria de Guerrássim ao carregá-lo, levantá-lo, acompanhá-lo que Ivan enxerga o oposto das palavras ignorantes de Prascóvia, que, ao contrário do que quer transparecer, preocupa-se mais com ela mesma do que com a morte de seu marido, até certo ponto desejável.

Nos derradeiros movimentos de sua consciência, Ivan começa um diálogo consigo, ou com um espírito, não se sabe bem, cujo resultado será a mudança completa de sua concepção de morte, sem deixar o campo da imanência. Não revelarei o final do livro, por uma questão de sabor, eu não o faria com a maestria de Tolstói. De fato, toda a construção da situação de Ivan se faz necessária para a apreciação deste último instante de sua vida.

A obra de Tolstói é costumeiramente divida em duas: a crítica aos costumes da doutrina cristã ortodoxa e a crítica aos costumes da alta sociedade russa. Esse viés crítico torna-se bastante propositivo por meio das “lições de moral” que encontramos em suas obras. Daí a sua costumeira denominação posterior de anarquista cristão, um termo bastante impreciso, usado para se referir à sua resistência mística às convenções sociais de sua época. A morte de Ivan Ilitch é um livro impressionante que ultrapassa os possíveis questionamentos que tenhamos à filosofia ou à religião de Tolstói, já que trata de maneira ímpar uma questão que nos torna todos reféns, ou se preferirem, atores de um mesmo processo.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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rtmartins
6 anos atrás

Gostei da análise! Acabei de ler o conto e, como de costume, procurei algum comentário sobre o texto.
Nesta história acho particularmente interessante o modo como a crítica é feita – Ivan várias vezes chega à conclusão de que toda a sua retidão na verdade não fez nenhum sentido, mas, ao mesmo tempo, ele conclui que isso é um absurdo e tenta acreditar que viveu da maneira correta.

Rilson Guedes
Rilson Guedes
4 anos atrás

Ótima resenha. O livro A morte de Ivan Ilich foi publicado em 1886, mas sua mensagem chega até os dias de hoje. Ivan sentia uma necessidade profunda de atenção e viveu sua vida em busca de superficialidades como forma de preencher de alguma forma o vazio que preenchia o seu coração. Viveu segundo o que fosse ditado pela sociedade, e se vangloriava quando era aceito pelos seus pares. Era cínico e desapaixonado. Escolheu sua faculdade e seu casamento como formas de agradar seus companheiros e ganhar destaque social. Mas, de que adiantou a Ivan juntar tudo aquilo se não pôde… Ler mais >