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A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado”

– Nietzsche, Ecce homo, por que sou tão inteligente?, §10

Tornar leve o maior dos pesos! É isso que pretendemos com este texto. Todo pensamento carrega uma potência dentro de si, quanto mais potente, maior o número de interpretações possíveis. Vimos isto com o conceito de Eterno Retorno, uma potência tão grande e tão complexa que criamos uma série para dar conta dele. E para finalizar, trouxemos Deleuze, grande leitor e intérprete do filósofo alemão, que também ocupou-se deste pensamento quando desenvolveu o conceito Eterno Retorno da Diferença, trazendo uma interpretação radical de uma ideia já um tanto quanto forte e difícil de ser digerida. Comecemos pelo começo:

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes'”

– Nietzsche, A Gaia Ciência, §341

Sim! Esta é a aposta nietzschiana, você suportaria o pensamento do Eterno Retorno Cosmológico? E se tudo retornasse exatamente da mesma maneira? A pergunta de Nietzsche é se a forma homem é capaz de afirmar o retorno da vida pequena e miserável que tem vivido. Conseguiríamos afirmar o retorno de tudo exatamente igual? “Tudo na mesma sequência e ordem  – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante“.

Ora, Nietzsche testa o homem do ressentimento, sabendo de antemão a sua resposta. Não, ele não suportaria o Eterno Retorno, ele não abençoaria o demônio que lhe dissesse isso; na verdade, como no aforismo, ele “se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou“. O ser humano moderno vive no niilismo, por isso não consegue afirmar sua existência com força o bastante para suportar o pensamento do Eterno Retorno. Sua vida é muito fraca, impotente, ele pensa demasiadamente no porvir, no bem da humanidade, no progresso, no retorno de Cristo…

Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟ é um pensamento extremamente pesado para o homem. Mas Deleuze quer tornar leve o mais pesado dos pesos. Por isso, o cerne da questão é quando Nietzsche escreve: “ou você já experimentou um instante imenso?“. Sim! Quando a Vontade de Potência afirma a si mesma, ela cria estes instantes! A Vontade de Potência é sempre força de criação, de transvaloração, produção do novo, de produção da diferença! É aqui que Deleuze entra interligando vários conceitos nietzschianos para articular o Eterno Retorno da Diferença.

– Melissa McCracken

O pensamento do Eterno Retorno precisa tornar-se novamente perigoso, precisa tornar-se novamente uma força capaz de transformar a realidade. O homem está preso na repetição de sua vida medíocre. Vítima das forças reativas, sente o peso da existência como uma maldição, sente suas forças se esvaírem, se perderem. Para ele, o que há de impressionante em tudo retornar exatamente da mesma maneira? Nada! Tudo exatamente igual? Que horrível maldição! Ele espera o céu, a redenção, qualquer coisa que o tire desta vida medíocre! O que se espera é o novo, mas um pensamento que traga tudo da mesma maneira não leva a nada…

É no desafio de se pensar o Eterno Retorno que tudo se decide, onde os fortes se separam dos fracos, onde se diz Sim ou Não à vida e à existência. O viés ético do eterno retorno traz duas interpretações, por isso ele é a chave para quebrar o niilismo passivo e entrar no niilismo ativo! Por que o Eterno Retorno pode ser da diferença ou do mesmo? Porque é na seleção das forças que se selecionam os fortes entre os fracos.

Somos capazes de suportar Eterno Retorno do Mesmo? Se não, é porque o sentimos como uma espécie de maldição e compreendemos que não só de repetições e do mesmo se constituem as forças. Negar o eterno retorno do mesmo é se desesperar com a impossibilidade de criar! É procurar desesperadamente uma alternativa, e ela se encontra na diferença que existe na própria afirmação! Com a afirmação da diferença o niilista vence a si próprio, e de reativo, torna-se ativo. Deleuze faz com que o peso do Eterno Retorno quebre o homem e o faça procurar pelos  momentos imensos, onde o que se afirma é a própria afirmação de sua Vontade de Potência.

Por isso Nietzsche traz a personagem conceitual do Além-do-Homem, porque somente ele é capaz de afirmar a existência como devir, porque sua força de afirmação é a de criação de novos valores! Nada é igual porque quando ele afirma ele o faz criando, moldando a realidade! A própria essência de seu ser é sua capacidade de diferenciar-se. O homem pequeno julga, tem medo, se esconde, pede tutela, tudo é igual e isto é uma maldição da qual ele não consegue escapar; já o Além-do-Homem está acima do bem e do mal, só ele é capaz de entender o Eterno Retorno como produção da diferença, porque para ele, o que retorna é a afirmação de si, de sua singularidade, não o mesmo.

O processo se dá em dois momentos. São duas afirmações:

  1. Pensamento Seletivo: acabar com os meio quereres, as impotências. “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟. Elevar o grau de afirmação daquilo que se quer, e também daquilo que passou, “transformar todo foi em assim eu quis” (Da Redenção).
  2. Ser Seletivo: o Eterno Retorno da Diferença é uma roda (devir) que gira rápido. Este movimento centrífugo elimina aqueles que não conseguem manter-se em devir. Por isso que é preciso aumentar o grau de potência das forças de afirmação, porque e que gira são as próprias forças que se afirmam na realidade, as forças se afirmam no devir, somente aquele forte o bastante é capaz de suportar.

Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação, é expulso pelo próprio movimento do Eterno Retorno”

– Deleuze, Nietzsche, p. 32

Por isso trata-se de uma dupla afirmação: do devir, e da própria afirmação do devir, das forças, mas principalmente das forças ativas de criação. É um problema ético, aquele que consegue afirmar-se é aquele que dá à Vontade de Potência livre curso, encontrando novos caminhos para ela. Suas forças não estão quebradas, seus joelhos não estão dobrados. A Vontade de Potência sabe que a própria afirmação já é afirmar a diferença, isto porque a Vontade de Potência é a força de criação e diferenciação, e o retorno do Mesmo uma maldição horrível de se pensar. O peso do Eterno Retorno do Mesmo esmaga e impede qualquer movimento, por isso Zaratustra ensina a torna-se leve e aprende a dançar.

O ser humano ativo sabe que o que retorna é a diferença, e mais, ele quer fazer retornar a diferença, está ansioso por isso, operando mortes e criações contínuas! O movimento de diferenciação é a própria marca do seu ser, ele se diz através da diferença. O pensamento do Eterno Retorno destrói o homem cansado e o leva à ação, destrói o mesmo para dar livre curso à sua Vontade Criadora. No fim, o niilismo é vencido por si mesmo. Tudo se torna leve, tudo dança, tudo acompanha o fluxo de produção infinita. Não há nada mais leve que o Eterno Retorno da Diferença, mas “o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

Se o Camelo carrega sempre os mesmos valores e não consegue criar, a afirmação do Eterno Retorno do Mesmo é apenas a afirmação de seu niilismo passivo! A mesma vida, a mesma rotina, tudo exatamente igual. Mas o camelo segue para o deserto e então Nietzsche traz a figura do Leão! Sim, ele é capaz de destruir valores! Mas e depois? Destruir a si mesmo ainda não é criar! Como fazer? É por isso que o filósofo alemão necessita de três metamorfoses. A criança é uma roda que gira por si mesmo, ela é a criação, ele se move através de devires-éticos. Afirmando não só este mundo, o conformado passivo já faz isso, mas afirmando também a produção dentro desta realidade!

O Eterno Retorno só encontra sua verdadeira potência ao afirmar-se como diferença e criação, assim diz Deleuze. Somente as forças afirmativas retornam, porque somente elas são capazes de nos transformar. O Eterno Retorno da Diferença é este rio heraclitiano em que pulamos e não podemos voltar os mesmos. O que sai dele não é este mesmo mundo nem estes mesmos Valores muito menos estes indivíduos pequenos e mesquinhos, é a Vontade de Potência, a imanência pura! Deleuze ensina, através de Nietzsche, que a única coisa que retorna eternamente é a diferença.

Texto da Série:

Eterno Retorno

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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anisioluiz2008
9 anos atrás
gustavo
gustavo
9 anos atrás

Olá, queria saber o que vocês acham da minha interpretação do eterno retorno. Li várias vezes “O convalescente” do Zaratustra e não conheço ninguém no meu convívio que tenha lido tanto Nietzsche, nem minha psicóloga hehehe 🙂 então aí vai: Se tudo retorna eternamente e nossa vida é exatamente igual às nossas próprias vidas nos outros grandes anos do vir a ser, qual a utilidade de determinarmos que escolhas e vivências são e serão eternas? Uma vez que a vida é exatamente igual à próxima vida na roda do vir a ser, uma vida não é igual à eternidade? A… Ler mais >

roberto oliveira belas
roberto oliveira belas
Reply to  gustavo
7 anos atrás

As substâncias entregues ao infinito não poderiam se combinar tanto infinitamente não sendo números e sendo substância para engendramentos estariam levados a repetição de possíveis e não de impossíveis e isso aboliria a culpa o pecado o progresso e o fim.

Bruno Bueno
9 anos atrás

Por tudo que estou vivendo e por tudo que não consigo ignorar nesta noite, ao meu amor-fati.

Romilton
Romilton
9 anos atrás

Gostei de seu comentário. É mais consistente.

Antônio Paulo Mazon Marchetto
Antônio Paulo Mazon Marchetto
9 anos atrás

Ótima interpretação.

Franciele
Franciele
6 anos atrás

“Torna-te o que sou que respeitarei tua diferença.”

gregorio
gregorio
1 ano atrás

Referente ao “Peso mais pesado.” Isso tem alguma relação com o Mito de Sísifo? Posso pensar que o “Eterno Retorno” também está relacionado?