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O murro na mesa concluiu o movimento que começou com o pensamento de que desta vez o menino tinha passado dos limites. Pensou que enlouquecia. Já não havia cabelo para arrancar. Sua face rubra e severa denunciava a completa impotência frente ao pequeno. Perguntava-se quando é que ele aprenderia as boas maneiras? ‘Que petulante! ’ – exclamou com tanta veemência que várias gotículas saíram de sua boca e pousaram na face do menino. Ele já tinha tentado oferecer um doce, já tinha dito que estava magoado, que ficaria muito feliz se ele parasse com aquilo, mas nada parecia adiantar. Só restou uma opção, ameaçá-lo. Pouco a pouco foi percebendo que poderia resolver as situações daquele tipo com uma quantidade moderada de força. Inicialmente um beliscão ou um tapinha e, quando as coisas ficavam mais sérias, um constrangimento ou uma acusação. Queria mostrar ao filho quão infantis eram suas atitudes.

Coloritmo, Alejandro Otero

E o menino foi deixando de tentar. Quando ensaiava um palavrão, via nas orelhas do velho pai aquela vermelhidão crescente seguida da cara que fazia quando olhava o boletim por trás dos óculos. Era melhor deixar de lado. Preferia deixar a brincadeira para outra hora e fazer a vontade do pai e, quem sabe, pelo menos não ser ameaçado. Com o tempo, deixou de se importar. Confortou-se com o sabor que deveria sentir, com os sons que deveria ouvir, com as coisas com que deveria sonhar e, por que não, com as opiniões que deveria ter. Para que ir além? Contestar só desgasta. Aceitou o time de futebol, aceitou os papéis na mesa do escritório, aceitou o paletó no armário, aceitou o anel no dedo, aceitou. Buscava antes de tudo não irritar o velho, depois alguma condecoração: era muito bom ser reconhecido por ele…

Num dia de final de campeonato brasileiro, o pai morreu. Morreu como nos filmes, morreu como os bichanos, morreu como deus. Como não poderia deixar de ser, o filho entristeceu e triste sofreu. Nos anos que se seguiram, sentia como se uma grande parede caucasiana o separasse da vida. Não enxergava em suas mais genuínas ações nada que as justificasse. Era como uma bailarina de caixinha, que só gira quando alguém dá corda. ‘Algum reconhecimento!’ era o impulso que o levantava nos dias mais difíceis. Esperou e esperando adoeceu: sem força, sem vontade, sem tentar, sem testar; mas cheio, cheio de esperança, cheio do mais infrutífero dos afetos.

Não queria filhos, mas eles vieram mesmo assim. Foi nos pequenos que ele viu a solução. Seria para eles o melhor pai e eles haveriam de o reconhecer. Fez o que sabia de melhor e também o que não sabia. Inventou-se pai, mãe, irmão e amigo. Enquanto estava de olhos abertos, trabalhava pela satisfação dos meninos; e, de olhos fechados, sonhava com os abraços amorosos e com as lágrimas sinceras de agradecimento. Nos primeiros anos, as crianças foram dele. Seguiam-no como pequenos patinhos. Mas logo começaram os problemas. O mais novo não deixava passar uma oportunidade de desafiar o pai e este ficava completamente desconcertado. Já o mais velho parecia fazer o exato oposto do que o experiente progenitor sugeria e este ficava absolutamente decepcionado.

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Com o passar dos anos, percebeu que sua fonte particular de reconhecimento secara. Aceitou o amargor e o ressentimento. A velha parede alva voltou e se pôs entre ele e os filhos. Ele repetia de si para si e, às vezes, aos filhos: ‘São dois mal agradecidos, não sabem o quanto eu sacrifiquei’. Às vezes, se usava de alguma moeda de troca por uma aprovação, mesmo que pequena. Fui num sábado chuvoso, véspera de natal, que ele abandonou o projeto de pai que até então o consumia. Esqueceu dos presentes, faltou na troca de faixa de karatê, deixou passar a reunião de pais e mestres, esqueceu-se de um aniversário, fugiu de uma reunião familiar, deixou uma felicitação por dar e um afago por abraçar.

Refletiu e refletindo constatou-se acabado: os limites estavam bem postos desde o começo. Demorou a perceber, mas sabia que por toda a vida cruzou faixas de chegada sem ter corrido maratona nenhuma. Entre sua vista e o horizonte, se punham sempre enormes obstáculos, firmes em posição, guardando curiosidades quaisquer. Pouco a pouco, foi dando passos para trás, tentanto tomar impulso para saltá-los, mas distanciou-se tanto que só enxergava agora um horizonte emparedado. Foi educado para obediência e aprendeu como poucos a se comportar, portava-se sempre conforme as expectativas, especulava sempre na condição de aprovação, provava logo sua capacidade e continha sempre sua ansiedade.

Num dia como outro qualquer, optou por lançar-se contra a parede. Munido de seu despreparo, dirigiu-se ao cândido alvo. Chocou-se com a rídicula violência de quem joga migalhas aos pombos. Força de longe insuficiente, mas de uma vivacidade inédita. Sentiu nos ferimentos algum fluxo. E a vida o atravessou, sem limites.

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Coloritmos, Alejandro Otero

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Aline Costa
Aline Costa
9 anos atrás

“Sentiu nos ferimentos algum fluxo. E a vida o atravessou, sem limites.” Lindo demais…o sentimento da vida vem de lugares que a maioria nunca espera,todos preferem fugir da dor, mas em algumas ocasioes é a dor quem te mostra o melhor da vida.