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A filosofia de Espinosa é de uma beleza ímpar. Suas proposições são secas e diretas, mas por trás delas encontramos uma sede de vida, uma potência afetiva inigualável. Hoje falaremos desta potência do corpo de afetar e ser afetado pelo que o cerca. O projeto de Espinosa envolve entender os afetos para cada vez mais utilizar-se deles de forma a tornar-se mais potente.

Façamos como entendia Espinosa: aumentar a potência de sentir para também aumentar a capacidade de pensar e existir, mente e corpo como duas expressões da substância; e desta forma, consequentemente, aproximar-se cada vez mais de Deus.

Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”

– Ética III, Def 3

O que é o corpo? É uma potência em ato, uma força de existir. Espinosa o define como um aglomerado de partes duras e moles, um conjunto de átomos, moléculas, tecidos, órgãos que possuem a capacidade de manterem-se unidos, regenerarem-se e agirem em conjunto. Mas o mundo nos supera em muito e por isso, muitas vezes, não temos a capacidade de agir sobre ele, e somos levados como folhas ao vento.

Nathalie Maquet

As afecções são o corpo sendo afetado pelo mundo. O que pode um corpo? Pode afetar e ser afetado! As afecções são este encontro pontual de um corpo com outro. Somos corpos que se relacionam com outros corpos; quando sofremos suas afecções, quando somos afetados pelos outros corpos, sofremos uma alteração, uma passagem, nossa potência aumenta ou diminui. Destas afecções ocorrem os afetos, uma experiência vivida; é uma transição.

Mas então precisamos perguntar o que são os afetos. A intenção de Espinosa, na terceira parte da Ética é estudar a dedução genética dos afetos, criando assim uma verdadeira ciência dos afetos. Como eles se formam? Como nascem? Como derivam-se uns dos outros? Espinosa acredita ser possível entender os afetos em sua produção interna e necessária, com seus vários graus de complexidade.

Num encontro, as relações podem se compor e aumentar sua capacidade de agir. Um afeto de alegria acontece quando uma afecção nos leva para uma potência maior de ser e agir no mundo; isso porque encontramos um corpo que combina com o nosso, que possui propriedades que se compõem com as nossas. Ex. o corpo da mulher amada, o abraço de um grande amigo, a água fresca quando temos sede, a comida quando temos fome, a música que nos chega aos ouvidos. Espinosa chama a isso de bom-encontro. Os bons encontros são sempre um momento onde nos tornamos mais próximos do mundo e de nós mesmos, ampliando a nossa capacidade de afetar e ser afetado.

Por outro lado, um afeto de tristeza acontece quando uma afecção nos leva para uma condição menor de potência, ou seja, nosso conatus diminui, nossa força para existir e agir, afetar e ser afetado, diminui, passamos para uma perfeição menor. Ex. o veneno que nos chega no sangue, encontrar-se com uma pessoa desagradável, ser ferido por um objeto cortante, ser infectado por alguma doença. Todos os encontros que nos afastam da realidade e de nós mesmos, nos limitando, constrangendo, fechando o mundo.

As afecções à base de tristeza se encadeiam, portanto, umas nas outras e preenchem nosso poder de ser afetado. Elas o fazem, porém, de tal maneira que nossa potência de agir diminui cada vez mais e tende para seu mais baixo grau”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 166

O corpo quer produzir afecções ativas, ser preenchido por alegrias. Afinal, só conhecemos o que é bom porque somos afetados de alegria. Mas isso nem sempre é possível; aliás, o mais comum é sermos afetados de tristeza, ao acaso dos encontros. O mal é sempre do ponto de vista do modo. Mal é o mau jeito, é o mau encontro, é a decomposição de uma relação. A tristeza, e eventualmente a destruição, significa que uma relação não se compõe. Vivemos em uma ordem dos encontros, convenientes e inconvenientes.

O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”

– Ética III, post. 1

Dos afetos primários, alegria e tristeza, nascem todos os outros. O amor, por exemplo, é a alegria acompanhada de uma causa exterior; o ódio é a tristeza acompanhada de uma causa exterior. Estas afecções refletem-se diretamente em ideias destas afecções, e a mente tem a potência de pensar tanto maior quanto mais tem a capacidade de ser afetada de múltiplas maneiras. É importante notar também como estes afetos nascem e se mantêm devido à constituição de nosso corpo, mas também, claro, ao modo como o mundo exterior está disposto. De quais encontros somos capazes, mas também quais encontros são possíveis na sociedade em que vivemos? Ou seja, todos os afetos são também (bio)políticos.

A produção do desejo, por sua vez, depende de como o corpo é afetado. O desejo é a própria essência do homem (veja aqui). Ele aumenta ou diminui de acordo com o conatus. Esta potência do corpo de preservar-se vem de sua força para ser afetado o máximo possível pela alegria e evitar com a mesma força os afetos tristes. Mas podemos ser ativos ou passivos nas causas dos afetos:

Os afetos passivos, também chamados de paixões, acontecem quando não somos a causa de nossos afetos, ou somos apenas causa parcial, uma parte mínima. Eles são causa necessária de um mundo que se impõe em nossos corpos. Ao sabor dos encontros, podemos ser afetados positivamente ou negativamente (achar uma nota de dinheiro no chão ou tropeçar e machucar o pé). Mas estes afetos são inconstantes e não podemos depender deles, já que, da noite para o dia, aquilo que nos dava alegria pode, no momento seguinte, nos trazer tristeza.

afetos ativos, também chamados de ações, só podem ser alegres, porque o corpo sempre esforça-se para aumentar sua potência de agir. O corpo é uma potência que busca expandir-se e tornar-se alegre. Sempre! Por isso podemos dizer que não há pulsão de morte para Espinosa (veja aqui). Quando o corpo age, ele age por sua própria natureza, que se esforça para crescer, ser cada vez mais forte, mais capaz de ser afetado de múltiplas maneiras e agir no mundo de muitas formas, aumentando sua potência e sendo afetado cada vez mais por afetos alegres.

A pergunta de Espinosa é, então, como evitar a tristeza? E mais, como produzir paixões alegres e posteriormente ações alegres? Parece fácil em um primeiro momento, mas, na verdade, é muito difícil, já que nossa sociedade parece estar inteiramente constituída para a tristeza, o ódio e a melancolia. O cinza das cidades não parece apropriado para a felicidade. Mas somos afetados de múltiplas maneiras ao longo do dia, e dentre estes afetos quase sempre se dão alguns bons encontros. A Ética de Espinosa procura transformar os afetos passivos em ativos, e assim sair da servidão para a liberdade. Levar a existência do campo da passividade e da reatividade para o campo da ação e da atividade!

afetos1

Podemos concluir então:

afetos 2

Os afetos passivos alegres são bons encontros que aumentam nossa potência corporal e também mental; esse aumento da potência de pensar gera noções comuns: passamos a entender melhor o mundo, conhecê-lo melhor. Conhecer melhor nossa relação com o mundo é ter a chance de escolher melhor seus encontros, ser ativo na geração dos afetos, o que alimenta nossa potência em ato para ser e agir. A busca de Espinosa é por essa hierarquia dos encontros. Sim, exatamente, hierarquia, porque queremos mais alguns encontros do que outros.

Espinosa busca um caminho para que possamos, através do conhecimento dos afetos, organizar os nossos encontros, fazer com que sejamos parte ativa do que nos acontece. Poderíamos chamar, ao modo de Nietzsche, de uma avaliação dos valores. Ora, por que não? Selecionar encontros é nos afirmar no acaso dos encontros, o que queremos e o que não queremos, o que podemos e o que não podemos. Para quais caminhos uma mente e um corpo ativos nos levam?

Na existência, devemos conquistar aquilo que pertence à nossa essência. Justamente, só podemos formar noções comuns, mesmo as mais gerais, se encontrarmos um ponto de partida nas paixões alegres que aumentam primeiramente nossa potência de agir”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 214

Nathalie Maquet

A Ética é um guia prático para a alegria. Através da análise dos afetos, que ocorre na terceira parte, Espinosa segue pela quarta parte procurando entender por que “percebemos o melhor mas, entretanto, fazemos o pior“, e finalmente, na última parte, trata de o que é a liberdade. Seguindo este caminho, percebemos como, para o filósofo holandês, temos a possibilidade de fazer do conhecimento o mais potente dos afetos! Sim, não há nada mais poderoso do que conhecê-los, porque eles são a fonte para formarmos as noções comuns, conhecimento de segundo gênero, e nos libertarmos das tristezas, medos e outros afetos que nos impedem de sermos livres.

A afetividade humana é a matéria prima das relações; ela, e somente ela, pode apontar o caminho que nos retira da moral, do julgamento e das paixões tristes para verdadeiramente mostrar o ponto comum em que os homens se encontram e interagem. É a partir dos afetos que podemos sair da servidão, alcançar a liberdade, a virtude e a beatitude.

O prazer de ler Espinosa nasce da lucidez com que a mente pode analisar seus afetos para encontrar a felicidade, não em uma outra vida, mas aqui e agora, o corpo em conjunto com a mente. Espinosa era feliz em sua simplicidade, porque encontrou os caminhos para sua própria satisfação; sua Ética não é um livro de regras a seguir, mas um guia prático para que cada um encontre seu próprio caminho de autorrealização. Façamos bom proveito.

É ele, portanto, que se esforça para extrair encontros do acaso e, no encadeamento das paixões tristes, organizar os bons encontros, compor sua relação com relações que combinam diretamente com a sua, unir-se com aquilo que convém com ele por natureza, formar associação sensata entre os homens; tudo isso, de maneira a ser afetado pela alegria [… o] homem livre e sensato, identifica o esforço da razão com essa arte de organizar encontros, ou de formar uma totalidade nas relações que se compõem”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 180

Texto da Série:

 

Ética

Comentário do Autor

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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sobrenomealex
sobrenomealex
7 anos atrás

Tão bom que cinco alunos de filo já te plagiaram rs
Voltarei infinitamente. Parabéns pela luz no conhecimento.

Dalila
Dalila
7 anos atrás

Pode me ajudar definindo “afetos irracionais” segundo Espinosa?

Betânia
Betânia
Reply to  Rafael Trindade
2 meses atrás

A maioria dos nossos afetos, por sinal

Raimundo Áquila
Raimundo Áquila
6 anos atrás

Parabéns Raphael! Seus textos fluentes e desembaraçados. Aprendo muito com esse encontro!

Yasmin Letícia
Yasmin Letícia
6 anos atrás

Uma amiga minha disse que tem uma produção muito melhor quando está triste, e eu não consegui entender isso ainda, sendo que Spinoza diz que a potência é diminuída quando estamos tristes. Se estamos alegres nossa potencia é aumentada, mas então como ela produz mais quando está triste?

Paula Barros
Paula Barros
Reply to  Rafael Trindade
5 anos atrás

Sim. Pois, pensando na afecção como instrumento para encontrar o caminho para satisfação, este tipo de afeto logo passado pode tornar-se um afeto ativo quando racionado para que haja auto transformação! Me fiz entender?

Ademir Inscio
Ademir Inscio
Reply to  Paula Barros
4 anos atrás

A dor em si não é só resumo acabado da tristeza pura , pode ser também a passagem de uma porta para o salão de potência de alegria. Só permitido seu alcance via sabedoria do segundo e terceiro gênero.

Anônimo
Anônimo
Reply to  Yasmin Letícia
5 anos atrás

Não é a tristeza em si que a faz produzir melhor, mas sim a sua própria capacidade de faze-lo . Uma pessoa triste que não soubesse escrever não iria aprender a fazer isso em um só instante por causa de sua tristeza. A alegria é a expressão da própria potência corporal e mental e a tristeza é o constrangimento, a negação dessa potência ( a diminuição da sua potência só pode ser feita por outra potência externa a sua que seja contrária e mais forte). Como é impossível não ser afetado de tristeza precisamos continuamente resistir à ela, e talvez… Ler mais >

Betânia
Betânia
Reply to  Yasmin Letícia
2 meses atrás

Penso que por alegre talvez ele quisesse dizer prazer, daí conseguiria explicar essa potência aumentada. Eu mesma tenho um prazer na nostalgia, mas não sofro com ela. Pelo contrário, me encontro fértil para produzir 🙂

Vladimir Pires Junior
Vladimir Pires Junior
6 anos atrás

Olá Rafael. Indica algum grupo de estudos sobre a linhagem dos “malditos” (Spinoza, Nietzsche, Focault, Deleuze)? Aguardo. Abs

Vladimir Pires Junior
Vladimir Pires Junior
6 anos atrás

Tenho interesse em grupo de estudos. Aguardo. Abs

Tiago calazans
Tiago calazans
Reply to  Rafael Trindade
3 anos atrás

Já tá rolando?

Xxx
Xxx
5 anos atrás

Conatus para baixo com muitas bobagens! Tem que rir…

Luciana
Luciana
5 anos atrás

Ola, poderia explicar o que seriam afecçõs no contexto espinosista? O sentido literal da palavra não se enquadra no contexto e há aqueles que compreendem afecções no sentido de imaginação, mas me parece uma definição ainda incompleta, precária.

Inaudito
Inaudito
Reply to  Luciana
3 anos atrás

Afeccāo seria a marca, uma carimbada no corpo, para surgir os afetos: de tristeza ou alegria.

Inaudito
Inaudito
Reply to  Luciana
3 anos atrás

Afeccāo seria a marca, uma carimbada no corpo, para surgir os afetos(desejo), de tristeza ou alegria.

Enne Marx
Enne Marx
4 anos atrás

Ótimo texto, claro e prático, assim como Deleuze escreve, de uma maneira que os simples mortais possam perceber de forma mais simples, rs.

Anderson Cardozo
Anderson Cardozo
4 anos atrás

Parabéns pelo rico esclarecimento!!! Linguagem clara e direta.