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Nesta parte, tratarei, pois, da potência da razão, mostrando qual é o seu poder sobre os afetos e, depois, o que é a liberdade ou a beatitude da mente. Veremos, assim, o quanto o sábio é mais potente que o ignorante”

– Espinosa, Ética V, prefácio

Espinosa faz, ao longo da Ética, o caminho que vai de Deus, que é a substância infinitamente infinita e possui em si todos os atributos, para os modos, que são os seres humanos, limitados no tempo e no espaço para depois fazer o percurso de volta. O filósofo holandês também define as maneiras pelas quais somos afetados (veja aqui). E por último, faz o caminho que leva o homem da servidão à liberdade.

Na verdade, podemos dizer que a filosofia espinosista tem este único propósito: através do conhecimento de Deus, sair da servidão e encontrar a liberdade (veja aqui). Toda a sua questão é investigar em que condições pode haver liberdade e por que vivemos tanto em servidão. Se foi necessário percorrer um caminho tão comprido, é porque nada é tão raro quanto encontrar um homem virtuoso e livre.

Antes, foi necessário definir o conceito de servidão. Toda vez que o homem não age por sua natureza, ele está sendo conduzido por forças de fora. É impossível que o homem não seja afetado e muitas vezes levado por estas forças que o contrariam; isto acontece porque ele é apenas uma parte reduzida do mundo, com uma potência limitada em face de forças externas.

Exatamente por isso, tal como Ovídio diz, o homem “vê o melhor, mas segue fazendo o pior“. Não há julgamento por parte de Espinosa, a fraqueza de agir do ser humano reflete sua fraqueza de pensar, ele é cheio de superstições e conhecimentos imaginativos. A liberdade vem quando a razão começa a pesar os afetos e aprende a refrear, medir e moderar; diferente dos impotentes que, em sua ilusão, acham necessário extinguir ou dominar absolutamente os afetos.

Espinosa nunca fala contra a felicidade ou a tristeza, contra o amor ou o ódio, eles estão presentes tanto na servidão quanto na liberdade. A diferença é que, por compreender, o homem livre é a causa ativa de seus afetos; dito de outro modo, eles provêm de sua própria natureza. Por isso o sábio é mais potente que o ignorante, porque através de uma análise de sua capacidade atual de afetar e ser afetado, ele aprendeu a interagir com o mundo de modo a evitar maus-encontros e maximizar bons-encontros. Espinosa diz que o conhecimento é o mais potente dos afetos, porque a mente tem a força de afirmar e negar certas ideias, e este conhecimento é o caminho mais curto para a liberdade.

Tudo se passa, então, como se devêssemos distinguir dois momentos da razão ou da liberdade: aumentar a potência de agir ao mesmo tempo que nos esforçamos para experimentar o máximo de afecções passivas alegres; e dessa maneira, passar ao estágio final no qual a potência de agir aumentou tanto que é capaz de produzir afecções elas mesmas ativas” – Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 180

Saímos da causa parcial, onde nos imaginávamos distantes e alheios ao mundo e entramos na parte comum, onde temos parte na existência. É aqui que a ética nasce, em uma rede que se tece nas relações de modo que todos cresçam mutuamente e reforcem a alegria uns dos outros. O aumento da capacidade de agir implica em tomar parte, agir em conjunto, fazer aliados, conexões, criar interdependências, ajuda mútua, crescer na conveniência das relações necessárias entre as partes e diminuir a dependência infantil e impotente. Autonomia não é estar separado do mundo, é convir adequadamente com ele. Não queremos ser passivos com relação aos nossos encontros alegres; isso pode até ser bom, mas é pouco, a potência é potência de agir, ela quer fazer parte, ser causa de sua felicidade!

Por meio deste poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo, podemos fazer com que não sejamos facilmente afetados por maus afetos”

– Espinosa, Ética V, prop. 10, esc.

Quanto mais conhecemos, mais somos capazes de escolher nossos encontros, é aí que Espinosa nos dá uma terapia para os afetos. A força maior da vida é o corpo agindo conjuntamente com o pensamento. O conhecimento, o aprendizado é um reflexo puro da potência que a mente tem de pensar, ele é sempre alegre. Se o conhecimento é triste, não é conhecimento, é ilusão, superstição, signo de poder! Por isso Espinosa nos introduz ao pensamento racional, quando não vivemos de acordo com o segundo gênero do conhecimento, logo nos tornamos contrários uns aos outros. Lembrando que a razão não comanda! Ela não pode ser colocada no lugar de um general em nossa cabeça que dá ordens, voltaríamos a Descartes se entendêssemos assim.

A força que tem um indivíduo é sua capacidade de compreender, com a força da razão e do conhecimento, sua capacidade de existir como desejo, conatus que se esforça para realizar bons encontros e ser causa de sua própria potência de existir. Quanto mais efetuamos bons encontros, mais nossa potência aumenta. E, finalmente, quanto mais cresce nosso conatus, mais nos tornamos capazes de afetar e ser afetados.

Liberdade é ter um corpo cada vez mais disposto a agir de múltiplas maneiras e ser afetado pelo mundo de múltiplas maneiras, aquilo que Espinosa chamou de plura simul. O conhecimento nos multiplica dentro de nós mesmos, assim, nos tornamos vários, cada vez mais ativos, cada vez mais artistas de nós mesmos. O gênero humano é apenas uma parte ínfima da potência infinita de Deus, mas quanto mais ele aumenta sua potência, mais se aproxima da criação.

Quanto mais uma coisa tem perfeição, tanto mais age e tanto menos padece e, inversamente, quanto mais age, tanto mais ela é perfeita”

– Espinosa, Ética V, prop. 40

É impossível o homem ser totalmente livre, já sabemos, ele sempre estará submetido ao acaso dos encontros. Apenas Deus é absolutamente livre, porque nada o constrange, ele tem plena liberdade de agir e criar segundo sua essência. A liberdade se opõe ao constrangimento; é totalmente livre somente aquele que não é constrangido por nada no ato de criar. Mas nós também temos uma parte na essência divina, um grau de potência, ela se define por nossa potência atual, que varia de acordo com os encontros. Mas esta abertura tende ao infinito!

Nossa liberdade está em fazer coincidir a atualização da potência de nosso ser com a natureza de nossa essência. Quando ser, fazer e desejar se tornam a mesma coisa, atuamos de acordo com a necessidade de nossa essência. Passamos a produzir a nós mesmos. Constituir-se o mais plenamente possível segundo sua própria potência. Produzir como consequência de nossa plenitude na existência, sendo causa adequada daquilo que acontece. Liberdade não é a ausência de causa, mas a necessidade da causa interna, necessidade de ser aquilo que se é.  Liberdade é agir adequadamente para a conservação e ampliação de nossa potência de conhecer, existir e agir.

Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir”

– Espinosa, Ética I, def. 7

Podemos facilmente ver como as ideias de Espinosa são revolucionárias! Com sua Ética, ele se contrapõe a Descartes: não é possível um domínio completo dos afetos; aos estoicos: não é possível extinguir os afetos. Também contrapõe-se às ideias cristãs de livre-arbítrio: liberdade não é a ausência de causa, mas a necessidade de uma causa interna, que é a essência do ser. Os homens em geral acham que são livres porque escolhem entre possíveis, mas desconhecem as causas pelas quais são levados a escolher, e por isso lutam por sua servidão como se fosse por sua liberdade.

Os resultados de tais ideias nos levam a conclusões eminentemente práticas. Só se torna livre aquele que age no mundo segundo sua própria natureza, que não é outra coisa senão parte da natureza divina, parte da potência do ser. Espinosa erige uma filosofia prática. Só há uma substância, e ela é Deus, ou a Natureza; estamos mergulhados nesta substância, somos parte dela. Dos infinitos atributos de Deus nós temos conosco a extensão e o pensamento, ambos limitados no tempo e no espaço. Somos escravos porque não entendemos a essência eterna de Deus, estamos confusos e agimos de maneira a sempre nos prejudicarmos. Então é preciso uma análise profunda dos afetos e da natureza deles, compreender os afetos, aproximar razão e emoção.

Nathalie Maquet

Quanto mais nos conhecemos e descobrimos como a natureza à nossa volta interage conosco, mais podemos escolher por aquilo que aumenta a nossa potência e mais efetuamos bons encontros. Liberdade é conveniência entre as partes e o todo, tomar parte no sistema de concordâncias, coerências e conveniências da natureza é, pela potência do pensamento, encontrar o que é útil nas relações necessárias. Desta forma, entendendo a natureza divina e, agindo segundo nossa essência, nos tornamos cada vez mais livres.

Quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas causas, e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas e não, absolutamente por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los, nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade”

– Espinosa, Ética V, prop 10, esc

Estas novas formas de agir e de pensar se provam muito melhores que as anteriores. Entramos aqui no terceiro gênero do conhecimento. Não precisamos mais crer em uma transcendência, nós próprios somos parte da eternidade. Deus não é mais um ser que muda constantemente de ânimo, que pune e cria um inferno reservado para aqueles que não o obedecem. Deus não é mais um tirano cruel e impiedoso. Deus desceu à terra, não somente na forma de um homem, mas na forma de toda a natureza. Isso põe fim às superstições que tanto prejudicam o verdadeiro conhecimento. Não há mais uma causa final, um objetivo divino. A ignorância, mãe do medo e da esperança, se torna cada vez mais fraca, isto porque encontramos os motivos de nossas ações em uma causa segura e certa: nós mesmos. Fazemos, ao invés de esperar; confiamos, ao invés de temer; tomamos parte, ao invés de simplesmente sermos parte.

Esta liberdade se reflete no mais profundo contentamento consigo mesmo, um contentamento de quem apropria-se de si mesmo, como causa ativa. Vive-se em Beatitude! Somos deuses na terra, não porque extinguimos os afetos, mas exatamente pelo contrário, porque finalmente aprendemos a lidar com eles de modo a gerar sempre e cada vez mais contentamento consigo, com a natureza, com Deus.

Somos o modo mais potente dentro da natureza, porque somos incrivelmente capazes de inumeráveis afetos e criação de modos novos de agir. Não há ninguém mais livre nem mais ativo que homens e mulheres, e dentre eles, não há ninguém mais livre nem mais feliz com sua própria existência que o filósofo, o sábio. O homem livre sabe melhor do que ninguém que, tal como tantas religiões afirmam, ele e Deus são um só.

Texto da Série:

 

Ética

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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luizfernandobe
9 anos atrás

É maravilhosa essa alegria de Espinosa, é a mesma alegria que acabei de sentir ao encontrar – no sentido de Espinosa – este site.

Oslan Caldas
Oslan Caldas
Reply to  luizfernandobe
3 anos atrás

Maravilha! Faço das suas palavras as minhas!

cristiano josé alvarenga
cristiano josé alvarenga
Reply to  luizfernandobe
1 ano atrás

espinosa cria uma éticada alegria e da liberdade.identifique a alternativa que ilustra frase do auto sobre este tema

Cássio Jônatas
8 anos atrás

🙂

Marcelo
Marcelo
7 anos atrás

Espinosa tem fundamento no budismo?

Caroline Albrecht
Caroline Albrecht
Reply to  Marcelo
3 anos atrás

Também me lembrou muito a filosofia de Lao Tsé apresentado no Tao Te King!

Luis Felipe
Luis Felipe
Reply to  Marcelo
2 anos atrás

Marcelo, sou praticante do Zen budismo e venho estudando Espinosa. Vejo muitas semelhanças também, mas creio que nãos influenciaram. tem esse livro do Donati Caleri: Espinosa e Zen-budismo que encontrei sem querer é muito interessante. Espinosa e Zen Budismo https://www.amazon.com.br/dp/8542105389/ref=cm_sw_r_cp_api_glt_i_M7FPMWMZQ0A6N1GN45W3?_encoding=UTF8&psc=1
Aproveito para parabenizar os Rafaeis pelo site / podcast e trabalho. sou fã.
abraços

Menveli
Menveli
2 anos atrás

Amigo, Venho aqui lhe dizer que você é um ótimo escritor. Parabenizo seja lá quem escreveu está matéria.