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O homem moderno surge através de vários mecanismos. Ele não é uma essência, é um projeto levado a cabo pela modernidade. Os processos de subjetivação são vários: a família nuclear, a escola, o exército, o hospital e caso tudo falhe, as prisões. Há um caminho a percorrer, uma trilha da qual não se deve desviar, um plano traçado.

Foucault se debruçou sobre o aparecimento e funcionamento destas instituições e, dentre suas conclusões, percebeu que todas funcionavam através do modelo panóptico, figura arquitetural idealizada por Jeremy Bentham:

Em 1793 Bentham concebeu seu projeto de Panopticon, que se tornaria a matriz arquitetônica das prisões europeias”

– Foucault, Sociedade Punitiva

Podemos começar com uma pergunta: como vigiar mais e melhor? Ora, na escuridão da masmorra não podemos ver nada, o recluso se esconde. É necessário luz. Quanto mais luz, melhor! O Iluminismo é também aquele que torna visível o estranho, o desprezível, o anormal, o excluído.

O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado”

– Foucault, Vigiar e Punir

A arquitetura é pensada para que a luz passe. Tudo deve ser iluminado, tudo deve poder ser visto! Na sociedade da transparência, nada deve ficar de fora. O panóptico é como um zoológico, aqueles que estão à disposição devem estar numa posição de poder ser observados a qualquer momento.

Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”

– Foucault, Vigiar e Punir

O indivíduo precisa saber que está sendo observado o tempo todo! E mais, precisa saber que está sozinho nesta observação. Tudo será anotado em sua ficha, em seu cadastro, em seu prontuário. A sensação de que está sendo visto precisa prevalecer, mesmo que não esteja efetivamente sob o olhar do vigia.

O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente”

– Foucault, Vigiar e Punir

A dissimetria (genial, não podemos negar) é a quebra do par ver/ser-visto. O sujeito vive sob os holofotes e, ao mesmo tempo, na mais completa ignorância, não sabe se está sendo observado ou não, se tem alguém na torre ou não, se estão anotando ou não, se está sob severa investigação ou se foi esquecido lá.

Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha”

– Foucault, Vigiar e Punir

A visibilidade se torna uma arapuca, uma estratégia do poder. Ela é colocada no lugar da privação e do esconder. Assim se observa, se aprende, se controla e mais facilmente se pune. Por sua enorme competência e eficácia, o Panóptico se torna rapidamente o modelo arquitetural da sociedade. Todas as instituições começam lentamente a se parecer com ele.

A grande inovação, como dissemos, é a dissociação entre o par ver/ser-visto. Seus efeitos serão utilizados na vida cotidiana. Ele será usado sempre que houver uma multiplicidade a ser controlada. Cada preso, aluno, trabalhador, paciente, etc., é colocado em uma célula, uma divisória, permanecendo isolado de outros estímulos para ser melhor observado. O poder captura para colocar ao seu dispor.

Desta forma, dirão, os alunos podem estudar melhor, sem se distrair; os trabalhadores não organizam greves, que atrapalham a produção; e os presos não se revoltam. A multidão, lugar de trocas e de afetos, é transformada em uma coleção de múltiplas individualidades, mas separadas por uma fina divisória que não os permite acessar por completo o diferente. Mais poder será, de agora em diante, mais Vigilância, que criará efeitos de mais Disciplina e maior efetividade.

Mas, afinal, por que o Panóptico é tão efetivo?

  • O Panóptico faz a inversão definitiva entre reprimir e produzir. A disciplina possível através da vigilância panóptica permite que os indivíduos sejam treinados, coordenados, habilitados. Se tornam, portanto, mais obedientes e menos perigosos para a sociedade. A função disciplinar foi invertida. As condutas continuam sendo moralizadas, mas cada vez mais, a disciplina funciona como um modelador de comportamentos. O poder penetrou no corpo através da disciplina, não apenas para moralizá-lo, mas para modelá-lo. Produzir um homem decente antes que o mundo o corrompa!
  • A arquitetura panóptica permite ser usada em praticamente qualquer lugar e instituição. Além disso, ela permite que o olhar vá para além de suas fronteiras: a escola pode observar os pais, o trabalho pode observar o momento de diversão e assim por diante. Os mecanismos disciplinares se ramificam. Essa é a tendência que leva a disciplina a se transformar em controle, como Deleuze bem notou, e também à ideia de Biopolítica, como notará Foucault. A disciplina se espalha como rama pelo chão, na trama da multiplicidade.
  • O modelo panóptico chega lentamente até às instâncias mais altas do poder, permitindo uma observação permanente, exaustiva, onipresente, onisciente, onipotente, mas sem rosto. A disciplina se estatiza e se espalha por todo o campo social. O Estado se apropriou da disciplina num sentido preciso: como poder inquisitório e policial. Os três poderes precisam de um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção. Todos são vigiados.

O século XIX fundou a era do panoptismo”

– Foucault, Sociedade Punitiva

Foucault chamou este modelo disciplinar de arquipélago carcerário, nome pomposo para dizer simplesmente que transitamos durante nossa vida entre uma prisão e outra. Neste arquipélago, estende-se uma complexa rede de comunicação: psicólogos, conselhos tutelares, policiais, professores, gerentes, pais: os carcerários modernos. Somos levados de uma prisão a outra. A partir do momento em que nossos corpos já foram suficientemente docilizados na escola, estamos prontos para a universidade ou para o trabalho, dependendo de cada caso específico. A disciplina não é a instituição, é o modelo que o poder utiliza em seus processos de subjetivação.

A sociedade inteira porta o elemento panóptico-penitenciário, porque o fenômeno das prisões é maior que a reclusão de detentos. Trata-se de uma dimensão geral de controle social, uma nova maneira de imposição do poder.

Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”

– Foucault, Vigiar e Punir

Texto da Série:

Vigiar e Punir

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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clarice
clarice
9 anos atrás

o pior escravo (ou melhor, para eles) é aquele que nem sabe que o é.

Aurélio
Aurélio
Reply to  clarice
9 anos atrás

o pior senhor é aquele que trata bem seus escravos

Bathomen
Bathomen
Reply to  Aurélio
9 anos atrás

Preste atenção à metáfora que você escolhe: não há senhor nesse modelo (“Falta de liberdade > Escravidão > Senhorio” foi movimento por livre associação, use os espaços a seu favor, não contra ti mesmo, usar uma dicotomia senhor-escravo enquanto se coloca do lado do escravo é só dizer sim à privação da própria liberdade ao invés de ir ao escape que é a moral do texto). Culpar o sistema é como culpar o ar, já que ele transmite informação. Somos nós que usamos estratos e fluídos, materialidades e movimentos. Cabe a nós a responsabilidade de fazer o melhor da situação,… Ler mais >

S.M Adelino
9 anos atrás

Isso traz uma paranóia, uma inquietação na mente e uma vontade de se esconder.
O pior que está lá, só não vê quem não quer. Isso tudo pode parecer louco e ficcional demais, mas não é impossível. É surreal, mas crivel.

Adair Neto
9 anos atrás

Fácil seria se o panóptico fosse apenas a internet, os governos e as grandes empresas. Ele está em toda a estrutura social. É apenas reforçado pelos primeiros.

Calixto
Calixto
9 anos atrás

Muito bom o texto! Parabéns pelo trabalho!

Pedro Falci
Pedro Falci
7 anos atrás

O intendimento desse texto depende da leitura dos outros

Roberta Alcantara
Roberta Alcantara
6 anos atrás

Adorei! Usei como base para uma redação de treinamento para o Enem.

Claudio Silveira
Claudio Silveira
6 anos atrás

Você usou somente o vigiar e punir? as ideias de nomadismo e de linha de fuga são de Foucault ou vc tirou de Deleuze?
ps: não é nenhuma critica, só quero saber mesmo ahahaha

Silena
Silena
3 anos atrás

Muito bom seu material, parabéns.

Ana Caroline
Ana Caroline
3 anos atrás

Que texto maravilhoso! vou usar para minha monografia (com a devida referência) Parabéns ao autor!

Larissa
Larissa
2 anos atrás

Que texto! Leitura leve sobre um tema tão pesado, ficou foi faltando mais conteúdo haha. Incrível, parabéns ao autor.

Carlos Augusto de Oliveira Gonçalves
Carlos Augusto de Oliveira Gonçalves
Reply to  Larissa
9 meses atrás

O panóptico está nas escolas, o total controle das ações dos profissionais sejam eles professores, alunos, coordenadores, munitores, a equipe da cozinha, os funcionários da limpeza etc. Todos estão sob vigilância das câmeras instaladas em todos espaços da escola e controladas por munitores na sala da direção, detalhe que também e observada por outros meios panópticos.