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Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, até a madura liberdade do espírito, que é também auto-domínio e disciplina do coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários — até a amplidão e refinamento interior que vem da abundância [...] até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde"

NietzscheHumano Demasiado Humano, Prólogo §4

Depois de demolidos todos os sistemas, depois das tormentas do niilismo passarem destruindo tudo ao seu redor, resta um pensamento telúrico, uma pura filosofia da imanência. Nenhum filósofo mais encostará sua pena no papel para maldizer este mundo, apenas para dar vazão à Vontade de Potência. Depois de um “não” a toda moral, religião, imperativo categórico, vem o grande “Sim!” para tudo que seja deste mundo, é o momento da Grande Saúde.

O título deste texto (bem como do anterior) foi retirado do livro de Michel Onfray, “A Sabedoria Trágica – sobre o bom uso de Nietzsche“, onde o niilismo precede a transvaloração dos valores tal como a aurora conduz a noite ao dia. Este caminho é necessário para não confundir os novos valores com a moral antiga. O objetivo não é ficar no desespero niilista onde muitos naufragam, mas encontrar caminhos para sair desta condição. Só se faz um bom uso de Nietzsche através de um niilismo ativo.

A grande saúde de Nietzsche se baseia em cinco ideias que são verdadeiras armas de guerra para o homem superar a si mesmo. Cinco conceitos para escapar das garras do niilismo que se estende por toda civilização ocidental. Nietzsche não é profeta, apenas indica possíveis caminhos para cada um tornar-se o que é. Eis as cinco figuras da Grande Saúde:

  • Super-homem: nada rendeu a Nietzsche mais desentendimentos que o conceito de super-homem. Também traduzido como além-do-homem, esta figura não deve ser confundida com o torturador, o oficial nazista, com o terrorista frio, o cínico homem de negócios, o soldado da pátria. Não, sua crueldade é reservada para o terreno filosófico e os antigos valores. Seu antípoda é o homem do ressentimento, porque o super-homem sabe esquecer, sabe criar valores, ama seu destino (amor-fati) e por isso vive o instante. Ele é a reconciliação consigo mesmo, a materialização e superação do Eterno Retorno; nele, terminam os meio quereres, no super-homem, afirma-se a vida por inteiro.
  • A boa crueldade: a crueldade de Nietzsche não é a dos assassinatos e do ódio. Sua crueldade é para tudo aquilo que atenta contra a vida: matar o que nos mata, rápida ou lentamente, dentro e fora de nós. A vingança e os extermínios genocidas a ele responsabilizados não passam de uma leitura medíocre de sua obra. Impassibilidade frente ao que mata e faz morrer, ao reativo, paixão pelo vivo e pela atividade. Eis sua crueldade: não fazer pela metade, ir fundo na tarefa filosófica, mergulhar no niilismo e sair limpo, novo, mais forte.
  • O pathos da distância: aqui se estabelece a diferença entre senhores e escravos (ver aqui). O senhor coloca distância entre si e os escravos, ressentidos e carcomidos pela inveja. Ser capaz de criar valores é, invariavelmente, manter-se longe da turba, multidão indiferente, gregária e covarde, da mediocridade do caminho do meio (veja aqui). Nietzsche aristocrata? Talvez, mas só para criar valores, afirmar a si mesmo. Isso implica solidão? Não necessariamente, a solidão pode ocorrer mas é provisória. Diferente do escravo que se associa pelo medo, o senhor busca se aliar com outros em quem confia, admira, e pode juntar forças para afirmar-se. Ética do amigo, não da classe; ética do aliado, não das ovelhas agrupadas.
  • Estética Cínica: dentro da Grande Saúde estão valores leves, muito longe dos sérios filósofos em suas cátedras pensando em silêncio. Dança, riso, amizade, alegria contrapõe-se à torre de marfim. Um bom jeito de matar os deuses é com uma boa gargalhada. Troca-se a razão pelo riso. A embriaguez é melhor que a lucidez; a alegria é melhor que a tristeza; o amor ao destino é melhor que o mundo das ideias. Tal como Diógenes, Nietzsche zomba dos sérios demais, daqueles com passos lentos que não acertam o ritmo da harmonia da vida.
  • Casuística do egoísmo: Nietzsche fez de seu corpo um laboratório de experimentação. Estudar a si mesmo, aprender consigo mesmo, isso é tão importante quanto aprender com o mundo. A filosofia nietzschiana não é egoísta em seu sentido estrito: o que importa não é o Ego, a Vontade de Potência é maior que o ego. O que interessa aqui é mergulhar no mar de forças internas para entender como elas relacionam-se com o mundo à sua volta. Nietzsche preocupou-se diligentemente com sua alimentação: frutas, verduras, nada de comidas pesadas, nem de cerveja ou café; com o clima: ar seco e céu puro, o norte da Europa o deixavam doente. Há de se escolher também o que ouvir e ler. E, finalmente, os lugares por onde caminhar determinarão sobremaneira os pensamentos que vão nascer. Cuidado de si: um corpo que vive, transpira, respira, ingere, digere, enfim, é real, e lida com a realidade.

É possível, ainda hoje e talvez mais do que nunca, ser nietzschiano. Basta pouco, insubordinação é um bom começo, traçar caminhos para si também uma boa sugestão. Dar vazão à Vontade de Potência, confiar nos instintos, crescer, superar-se, afirmar o destino, tornar leve o mais pesado dos pesos: Eterno Retorno, fazer devir a diferença. Encontrar aliados, e não seguidores.

Eis as ferramentas para encontrar a Grande Saúde em um mundo onde os velhos valores enferrujaram. Mas caso não sirvam nós temos uma única sugestão: jogue fora e crie novos! a criatividade é uma prerrogativa, a aurora anuncia outros valores. Só se pode ser nietzschiano superando o mestre, não ficando eternamente embaixo de sua asa; foi o que fizeram Foucault, Deleuze, Bataille, Camus, Onfray e vários outros. Mas é necessário antes de tudo que o “Sim” supere o “Não”, que toda negação carregue consigo uma afirmação maior e mais potente.

Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §276

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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daniel barra
9 anos atrás

maravilha pessoal, bem didático, bem prático! ferramenta maravilhosa! parabens!!!

Pelotas Occulta
9 anos atrás

Republicou isso em PELOTAS OCCULTA.

Marcos Vinícius (Maark)
Marcos Vinícius (Maark)
8 anos atrás

Majestoso.

Rafael Martins
6 anos atrás

Belo texto, Rafael.

José Guido Bergamaschine
6 anos atrás

A forma de se libertar e ser eternamente compreensivo consigo mesmo. A alma é parte de um grande projeto.

Mateus Barradas
Mateus Barradas
5 anos atrás

Olá!

Criaram um texto belíssimo.
Fiquei emocionado ao lê-lo, sobretudo no final, quando Nietzsche põe o cuidado de si ao nível da própria atividade filosófica.
Obrigado.

Gabriel Ortiz Voser
Gabriel Ortiz Voser
4 anos atrás

Parabéns pela iniciativa!
Gostei muito do texto.
Desejo mesmo fazer uma pergunta para o autor: na seção , quando escreve que “Nietzsche fez de seu corpo um laboratório de experimentação”, em que evidências apóia-se para sustentar tal afirmação? Pode compartilhar suas fontes?
Antecipadamente, agradeço.

Gabriel Ortiz Voser
Gabriel Ortiz Voser
Reply to  Gabriel Ortiz Voser
4 anos atrás

(na seção ‘casuística do egoísmo’)