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No primeiro texto nos preocupamos em trazer as diferenças entre inconsciente, pulsão e temas que Freud chamou de “metapsicologia”. Neste, veremos as consequências desta teoria para a visão de homem e consequentemente para ética, colocando-a sempre em relação com as ideias de Nietzsche.

Nossa sociedade atual cultiva e se alimenta da culpa, tema que os dois autores falam muito. Trata-se de um assunto para o qual suas teorias convergem. A culpa é consequência da interiorização das forças, ponto em comum entre Freud e Nietzsche: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem” (Nietzsche, Genealogia da Moral).

O problema decorre mais uma vez das consequências destas afirmações: o sacerdote ascético transforma má consciência em desejo pecaminoso. E Freud, não fez isso?  O sacerdote ascético não faz nada mais que utilizar a própria matéria prima gerada pela civilização, este mal estar, decorrente da interiorização dos instintos básicos, para dizer, “estão vendo? A culpa é de vocês“. A dor que a má consciência traz, o desconforto, o desânimo são invertidos pela figura do sacerdote ascético, resultado: a culpa volta-se contra o próprio sujeito.

Não é difícil mostrar aos ressentidos que a culpa é deles. “Vocês mataram o pai primordial, vocês desejaram sua mãe, vocês trazem pulsões de destruição“. Já dizia Deleuze no Abecedário: “os psicanalistas são padres“. Freud não acha solução para o mal estar e a culpa; muito pelo contrário, conforme desenvolve sua obra, ele postula que o progresso da civilização só aumentaria o sentimento de culpa. O mal estar não é contingente, é estrutural. Podemos escapar? Não. Com o aprofundamento do niilismo, cavamos dia a dia nossa própria cova.

Superar a culpa só é possível superando a má consciência, o homem é um animal doente, superar a má consciência é ao mesmo tempo procurar superar a cultura, o mal estar inerente a ela e seu próprio produto: o homem. União pela culpa? União pelo medo? O Eros de Freud é o instinto gregário que unindo precisa encontrar uma maneira de conter a pulsão de morte, conter às forças de unificação e pacificação da existência. É isso que queremos? É isso que Nietzsche gostaria? A má consciência, fruto do niilismo, pode ser visto como uma doença terminal ou como as dores do parto.

Freud permite uma fuga da cultura? Não, para ele a cultura é um dos frutos mais maduros de nossa civilização: religião, arte e, principalmente, ciência. Enquanto Nietzsche, colocando-se do lado oposto, diria que a cultura, principalmente a alemã, é o fruto podre do niilismo e da vontade de nada. Nietzsche procura com sua obra uma transvaloração dos valores enquanto  para Freud a civilização é natural e necessária para proteger o homem dele mesmo.

Mas, diria Nietzsche, esta sociedade não pode existir sem a repressão dos instintos? Ora, então que ela não exista mais! Enquanto Freud procura conciliar o desejo com a lei, Nietzsche anuncia muito antes de Deleuze que o desejo é revolucionário, ele implica mudanças estruturais, radicais. Qual o valor destes valores? Freud ignora tal pergunta, mas Nietzsche a utiliza para por abaixo todos os alicerces que sustentam esta civilização.

Por isso podemos dizer que Freud não supera o mal-estar, porque não supera a cultura. Sua “cura” é a inserção do desejo na cultura, superar a distância entre o desejo e a Lei, pulsão e civilização. É impossível superar o mal-estar, mas podemos conviver com esta ferida aberta e infeccionada. Quem sabe até um dia nosso psicanalista nos dê alta. A luta de Freud é para que o desenvolvimento “normal” não caia na patologia de uma histeria ou uma psicose.

O neurótico de Freud provavelmente nunca enfrentou a questão que o demônio sussurrou nos ouvidos de Nietzsche: Eterno Retorno e amor-fati. Não, um neurótico nunca resistiria à questão: “você quer isso uma vez mais e inúmeras vezes?“, ele se “prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou” (Nietzsche, Gaia Ciência, § 341).

Freud encontra lenientes para suportar a dor: religião, arte, bebidas, asceticismo. A sublimação é uma das amarras que sustenta a civilização. Este mecanismo de defesa (afinal, defesa de quê?) permitiria uma expressão aceitável das pulsões, uma renúncia de uma vontade original e primitiva por uma civilizada e permissível.

Muito diferente de Nietzsche onde a ideia de sublimação não funciona como um substituto, sendo na verdade a própria expressão da Vontade de Potência, força como meio para mais força, atualização de uma afirmação. Uma força se afirma sempre de modo múltiplo, plural, ela se faz na sua afirmação, e esta força plástica pode se expressar de várias maneiras. Não faço uma música para substituir meu amor por minha mãe, a música é uma expressão legítima de minha forma de me expressar.

A arte, em Nietzsche se torna muito mais pura, o júbilo da dança de Zaratustra não combina com a seriedade de Freud. Não há mais nada para encontrar atrás da arte, ela é a pura potência do falso. Diferentemente de Freud onde a arte funciona como substituição de um prazer, em Nietzsche encontramos a vida como obra de arte.

Qual o último refúgio de Freud? A ciência. Patamar tão almejado pelo psicanalista, a ciência é o lugar onde a razão não mais se perde por caminhos duvidosos e perigosos como a religião e a arte. Freud confia na ciência, disputa um lugar entre seus representantes. Nietzsche dá risada, como bom niilista ele não vê na ciência outra coisa além de mais uma ilusão. Sim, a ciência é boa, mas desde que posta em seu lugar. A Vontade de Saber, quando não é colocada a favor da vida, se torna mais uma fonte de Vontade de Nada, refúgio, fuga da realidade.

Ao longo do texto, podemos ver como o diagnóstico da sociedade europeia é semelhante. Nietzsche e Freud mergulharam em seu tempo e na alma do homem moderno para entendê-los profundamente. Mas somente Nietzsche emergiu mais forte de tal imersão. “O que não me mata, torna-me mais forte” (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos). O diagnóstico é parecido, mas a partir dele cada um propõe caminhos diferentes: Zaratustra quebra as tábuas das leis, a psicanálise a toma nos braços com cuidado, temendo o que aconteceria se elas caíssem no chão.

Se em Nietzsche, o homem não tem esperanças, ele segue seu rumo para o abismo, em Freud a salvação do homem é possível através da cura psicanalítica. Não é necessário superar o homem, basta concretizá-lo, cavar mais fundo em sua psiquê. É neste ponto onde miséria, niilismo, humanidade e realidade se misturam para Nietzsche, a concretização do homem era seu maior medo. O homem precisa ser superado, não salvo.

Nietzsche volta-se contra seu gênio inspirador, Schopenhauer, enquanto Freud, no fim de sua vida e produção intelectual, passa a admirá-lo mais e mais. Freud não leu Nietzsche, leu Schopenhauer. É uma pena, a psicanálise teria se beneficiado muito do peso do martelo de seu contemporâneo alemão. A Genealogia da Moral foi abordada algumas vezes nas famosas “quartas feiras psicanalíticas”, Freud leu também alguns trechos de Ecce homo, Humano Demasiado Humano, mas no geral, como ele mesmo diz:

Neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de ideias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise”

– Freud, História do Movimento Psicanalítico

Há inúmeros Nietzsches e Freuds. Sendo assim, certamente é possível associar o pensamento de um com o outro (afinal, Nietzsche é citado tanto por anti-semitas quanto por anarquistas). Mas, o Nietzsche que abriu caminho para Foucault, Deleuze, Guattari, Bataille, Onfray, Camus, entre vários outros, está muito distante da psicanálise. Os psicanalistas ainda estão entre os últimos dos homens, eles ainda olham saudosos para o altar de um deus que não existe mais; com Nietzsche, pode-se finalmente prescindir-se de um centro e dançar para celebrar a morte de todos os deuses.

Nunca vistes uma vela caminhar por sobre o mar, arredondada, inflada e trêmula pelo ímpeto do vento? Igual à vela, trêmulo pelo ímpeto do espírito, caminha por sobre o mar a minha sabedoria – a minha sabedoria selvagem! Mas vós, servidores do povo, vós, sábios famosos – como poderíeis caminhar junto a mim?”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Dos sábios famosos

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Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Giovanna
Giovanna
9 anos atrás

Nietzsche é fabuloso, fico feliz ao ler um texto que o retrate com essa grandiosidade.

Malatesta
Malatesta
9 anos atrás

No inicio ao tratar da culpa parece haver muita semelhança entre Nietzsche e Sartre no sentido de “a existência precede a essência”, concorda com tal afirmação?

vilmar nunes
vilmar nunes
9 anos atrás

Excelente texto, muito esclarecedor. Só não gostei quando se referiu a Nietzsche como “um bom niilista”. vejo em Nietzsche um filósofo que superou o niilismo.

Agostinho Paulo
8 anos atrás

Os seus textos são um máximo. Adoro passar horas a ler. Melhor ainda seria sair pra comer um bolo e dançar.

Gabriela Oli
Gabriela Oli
6 anos atrás

Cara, muito bom! Ta me ajudando super no job, mas leria por puro prazer, parabéns.