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Sexus – Henry Miller

Há um momento em que o escritor entra em devir-escritor. Mas já falamos tanto de devires, por que falar de mais um? Qual seria a importância de se falar de um tal devir escritor? O mundo é tão prático, as notícias de internet estão sempre nos informado rapidamente do que precisamos saber. Sim, nós sabemos, mas o devir-escritor é um dos nossos principais modos de resistência criativa (dentre os vários outros devires anteriores), com uma diferença: trata-se de uma viagem imóvel.

Não existe devir-sedentário, claro, então precisamos considerar a importante possibilidade de compreender o leitor como um viajante. Há na leitura e na escrita um processo tão intenso que podemos falar de um devir-leitor e devir-escritor. Jorge Amado falava de quando seus dedos digitavam mais rápido que sua mente, os personagens como que se moviam pelo papel antes dele conseguir planejar o que fariam; Henry Miller era um ótimo datilógrafo, digitava muito bem, e podia escrever muitas páginas de seu romance em um só dia; Kerouac também nos conta deste frenesi da escrita, quase um estado zen, meditativo, suspenso. Seu corpo era mais rápido que sua mente, seus dedos, mais rápidos que os olhos. Uma Escrita Inadequada, Razão Corporal.

Um Corpo sem Órgãos nasce da escrita e da leitura, um  processo intenso que pode ser obtido no sofá da sala. Lembremos de Deleuze, é preciso sempre se perguntar: “isso funciona?”. Se não, pare de escrever ou para de ler! Os livros servem para o desejo alçar voo e encontrar outros territórios. Uma frase, uma lembrança, um lugar, é difícil saber onde o desejo encontrará um campo livre para povoar de multiplicidades.

– Félix Guattari

A escrita é uma ferramenta de criação de intensidades. Simples assim. Não se escreve para fugir da vida, por falta de vida, como fuga. A escrita é uma arma, uma vitamina que potencializa, ensina e torna mais capaz de viver. O escritor monta uma máquina de guerra que opera na realidade, livros são armas, pensamentos são um modo de resistir e atuar na realidade concreta. O escritor nômade entra em contato com os fluxos, seu corpo se torna um canal, ele abre os poros buscando por algo que se passe. Uma escrita experimental, que não procura interpretar; nômade é aquele que abandona a si mesmo no processo, volta, e já é outro!

Buscamos uma geografia das relações, e o devir-escritor é nosso batedor, explorador de sensações, vanguardista do acontecimento: o escritor cria linhas de fugas, ele entra em contato com a diferença pura pois abandona todos os modelos. O livro não é um manual, é um atestado, a prova de uma vivência. Joguemos no lixo todos os manuais. A bíblia não é a palavra de deus, é a doença dos homens. Só queremos, de agora em diante, encontrar livros mapas, livros afetos, livros acontecimentos. O devir-escritor é este processo, sem imitações, nem analogias. Os livros de Henry Miller e Marcel Proust são bons exemplos, cartografias das vivências pelas quais passaram: mapas de linhas e devires. A escrita é um dispositivo para organizar ideias, ou seja, organizar o corpo, desembaralhar pensamentos, desembrulhar conceitos, viver.

Sendo assim, é preciso aproximar-se cuidadosamente da escrita. Pensá-la sempre como um processo inacabado, sempre em vias de…, só assim o fluxo da escrita permite entrar em devir. Tudo começa com pequenos passos, uma letra após a outra. Da mão do escritor para o papel, novas conexões se fazem; das palavras no papel para os olhos do leitor, devires inesperados acontecem; da leitura para a vida, ainda mais novas possibilidades se desdobram. Sempre aberto, sempre abrindo, escancarado, explícito: a escrita se abre novas veredas. Lembrando maio de 68, a escrita precisa voltar a ser perigosa! É isso que o devir escritor faz!

Todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade”

–  Marcel Proust

Drummond

Para uma boa leitura, é necessário cantar junto, solfejar, não pensando em uma peça ideal, mas compondo junto. Quando Deleuze interpretava seus filósofos favoritos, muitas vezes colocava palavras em suas bocas, os enrabava. Não é para ler a partitura ao pé da letra, isso torna a música sem graça, sem se misturar no processo. Sem se doar, é impossível entrar em devir. A escritura se torna uma possibilidade de vida, ela arrasta para lugares inéditos, sensações nunca antes experimentadas. E se pensarmos o livro como um trampolim para a vida? Uma entrada, múltiplas saídas. Percebemos que fracassamos quando caímos na imitação, todo devir é um portal que precisamos atravessar.

Aquele que escreve, (tanto quanto aquele que lê) dá passagem às vibrações corpóreas. O pensamento se movendo por entre os dedos do escritor. Escrever não é apenas descrever o mundo, representá-lo (cuidado com os espelhos, eles distorcem e enganam). Quem carrega um livro como uma fonte de representação, faz mau uso de suas potencialidades, torna a escrita algo medíocre.

Livro = arma = ferramenta

Deixemos de lado os escritores platônicos, porque uma Razão Inadequada busca por simulacros, não trocaremos a realidade por espelhos bem polidos! Quando um livro transforma-se em bíblia, em regulamento, em dicionário, em espelho da realidade, em palavra intocada, a ferramenta perde sua multiplicidade e torna-se um ídolo, ícones que devem ser adorados, mas para nós, o tempo dos Ídolos acabou: Deus está morto.

O que dizer daqueles que buscam na escrita uma forma de reconhecimento? A fama, a celebridade? Escritores ressentidos e desesperados, rancorosos: “eles não veem como sou bom, um dia eles verão“. Um pensamento precisa afetar, para o bem ou para o mal. Um escritor precisa escrever com seu sangue. Não apenas quando vai bem… escrever é uma forma de melhorar também! Não seria no devir-escritor a grande expressão da liberdade? A possibilidade de filtrar todo ressentimento? A força de expressão que dá provas de sua potência e singularidade? O que é um escritor que não faz mal a ninguém? No devir-escritor, o corpo encontra sua força própria para realizar seus encontros, autopoiésis, ele mostra sua capacidade de efetuar-se e transforma-se neste ato. O escritor se cansou de olhar o rio, agora ele quer ser o rio. E no devir-escritor, ele conquista esta proeza.

Texto da série:

Ética dos Devires

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Manara
7 anos atrás

Interessante o tema do texto, que parece entre outras coisas, tratar da produtiva relação entre política e escrita. Sendo um dos pontos importante: escrever não é refletir, representar o mundo, mas criar uma máquina de guerra. Bem, aí vai minha questão.. falar em “devir-escritor” não me parece ser a formulação mais clara para o fenômeno ao mesmo tempo imaginário e político que se desencadeia na atividade da escrita. Se devir é sempre escapar ao padrão, vir a escrever, em uma concepção de escrita que não pretende representar o mundo, é tornar a escrita não apenas porta de entrada para o… Ler mais >

Argus Setembrino
Reply to  Manara
7 anos atrás

Olá Manara! Fiquei curioso com essa ultima citação que você fez. Essa vontade de que o Henry Miller fala é a “mesma” vontade do Nit ou Schopenhauer?