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A moral é um conjunto de regras que servem para conferir uma conduta a vida. Em sentido amplo, a moral é um conjunto de valores e de regras de ação propostas aos indivíduos por intermédio de estruturas prescritivas (família, instituições educativas, igrejas, partidos, etc.). Contrariamente, a ética diz respeito à maneira pela qual cada um constrói a si mesmo como sujeito moral”

Antonio Negri, Cinco Lições Sobre o Império, p. 182

Para os autores que estudamos, há uma grande diferença entre Ética e Moral. Não são sinônimos e não podem ser usados indiscriminadamente. Poderíamos até mesmo dizer que, para sermos didáticos, um se opõe ao outro. Por isso cabe uma análise mais detalhada sobre estas ideias tão essenciais. Este texto é importante porque complementa com a distinção entre Poder e Potência, que aplicamos em vários outros conceitos.

Além disso, refletir sobre Ética e Moral também amplia nosso estudo sobre a formação da subjetividade moderna, nossa investigação sobre o modo pelo qual somos produzidos.  A maneira como nasceu o homem, nas instituições de poder, vigilância e punição (ver aqui): hospitais, escolas, família, trabalho. É observando onde o poder se inscreve em nossos que corpos que conseguimos perceber melhor as diferenças entre  subjetividades errantes – nômades como gostam Deleuze e Guattari – e os sujeitos fechados em suas identidades fixas, os sedentários.

Em toda parte, o poder traça linhas, limites: “minha liberdade vai até onde vai a sua“. Há sempre a necessidade de sujeitos bem delimitados, como territórios demarcados em definitivo. O aspecto produtivo principal do poder é o Assujeitamento: o poder é diretamente proporcional à dominação e inversamente proporcional à potência. No esquema do poder, existem apenas classes sujeitadas, nunca grupos sujeitos. O poder é impotente, e a moral é o investimento na servidão e nos limites. O escravo pensa ser livre agindo em prol da ordem e do progresso, portando-se como um homem de bem, comprometido com o futuro da humanidade. Isso porque ele interiorizou seus senhores, enguliu as normas e regurgitou as demandas.

O moralista realmente imagina que a sociedade não sobreviveria à libertação das suas pulsões e desejos, ele aposta no constrangimento como força de coesão. Velho lenga lenga hobbesiano, quiçá freudiano, entrar para a vida em sociedade implicar em deixar a vida na natureza. O moralista range os dentes dentro de seu castelo, e pensa “o caos bate à porta” e se cerca de riachos com crocodilos e muros bem altos.

O poder é o que separa o homem de sua potência de agir em troca de uma promessa de segurança: dias de paz, constância, ordem e progresso. A moral começa nos céus da universalidade e recai sobre o corpo da singularidade. Começa com um “todos devem” e termina em um “ninguém pode”. Se o mundo não é perfeito, ao menos o moralista com sua cartilha tem a esperança de um dia não mais temê-lo.

O moralista faz porque espera a retribuição externa, ou eterna, o reconhecimento dos seus ou dos poderosos, sua virtude é a impotência de quem se vende, se perde, se rende. O fraco pede por mais moral, mais leis, mais repressão. O fraco se torna vigia do outro, policial, juiz de pequenas causas. Ele pensa fazer justiça com as próprias mãos, mas não percebe que é um cachorrinho na coleira. Claro! Como poderia ser de outro modo? Qual o seu circuito de afetos? Somente afetos tristes, somente aqueles que diminuem a sua potência de agir! Medo, tristeza, ódio, inveja não podem produzir um homem potente e livre, estes são a base de qualquer processo de assujeitamento.

Em todo canto vemos apenas impotência, indo até seu limite, claro, mas é tão pouco: da casa ao trabalho, do trabalho para casa, sinal vermelho, pare, sinal verde, ande, próxima saída à direita; não ultrapasse a linha amarela, mantenha roupas e mochilas longe das portas, não entre ou saia do trem depois de ouvir o sinal. Quantas vezes recalculamos nossa rota? É tão raro perceber algo para além do que foi previsto. Até a originalidade tornou-se axioma de mercado. O que vemos hoje? Um homem que mantém apenas seus reflexos básicos, sem criatividade, sem repertório, ressentido, deprimido, sem capacidade de fazer brotar a diferença. A tristeza é cinza e faz dessa vida, o começo do fim, um passar por acaso, um morrer por descuido.

Na Genealogia da Moral, Nietzsche mostra as grandes forças que tornaram o homem capaz de prometer. Eis o grande acontecimento da história da nossa recente espécie, a criação de uma consciência bem justa, como um uniforme de batalhão, sem espaço para deformidades e metamorfoses. Enquanto permanecemos na Moral, seguimos em marcha, gritando contra a vida à plenos pulmões.

Precisamos partir de outro ponto: o que envenena uns, é alimento para outros, o que é ruim para alguns é bom para outros. Não há porque ter medo, há constância na natureza, mas ela não conhece a moral, só conhece os bons e os maus encontros. Eis o que é fácil de perceber, mas difícil de compreender: a natureza não pode ser contrariada. Não há imperfeição, tudo se per-faz. A Ética depende dessa sutileza, ela é muito mais doce que a moral, ela é imanente, ela se faz em ato, ela é dinâmica. Enquanto o homem funda sua Moral em leis transcendentes, por não saber estabelecer relações horizontais, a Ética encontra nas relações as leis de passagem que se criam em cada encontro.

A Ética se pergunta pelo novo, ela se preocupa em garantir as condições em que a diferença se produz. Ela faz perguntas às quais não temos reposta pronta. O que pode o corpo? Com ela, somos capazes de transvalorar todos os valores. Porque, se começarmos a analisar, perceberemos que vários dos valores que nos constituem não são nossos. Simplesmente não são nossos! Foram empurrados à força ou colocados sorrateiramente. A alegria que experimentamos e construímos aos poucos, seguindo o caminho que se abre juntamente com ela, é a principal terapêutica que a Ética nos propõe. A grande subversão espinosista nos permite confiar em nossos afetos: ele diz, nós não desejamos porque é bom, mas é bom porque desejamos.

Denunciar tudo aquilo que é tristeza, tudo aquilo que vive da tristeza, todos aqueles que precisam da tristeza para afirmar seu poder”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, 186

Nosso campo de luta é o da denúncia das tristezas! Nosso combate é contra o juízo de Deus. Mas onde ele se faz? Primeiro em nós mesmos. É no campo da imanência, se faz nos encontros, na micropolítica, na capacidade que temos de nos produzir sem pedir por auxílio aos poderosos, sem pedir licença, sem implorar para que nos salvem. Nós temos muito o que combater, dirigir-se contra os poderosos é um bom começo, mas isso não basta. É preciso antes combater entre si mesmo, desvelar nossos fascismos dormentes, arrancar os órgãos que não nos favorecem, procurar um novo corpo. Precisamos criar territórios de resistência, onde haja criação e não reprodução. Onde verdadeiramente se consuma, ao invés de se comprar. Quanto mais o poder se complica, procurando fechar todas as saídas, mais nós precisamos nos tornar ativos, criar o inesperado, nos hibridizar, encontrar o que não pode ser predicado nem mercantilizado. O anômalo, o nômade, o errante, um campo das alianças brilhantes!

A liberdade não está no campo da moral, ela é a força que se liga pela própria potência! A liberdade aumenta em um processo de dobragem, conforme vamos articulando dentro e fora, criando novas possibilidades entre o que está dado e o que ainda nem foi pensado. É no próprio mundo, e pelo próprio mundo que se encontram os caminhos de expansão e alegria. Deus não dirá as regras em pedras gravadas com ódio e inveja. O que os moralistas chamam de liberdade, nós chamamos de obediência. Por isso tomamos tanto cuidado com eles, nossas leis são dinâmicas, são variantes, como a potência. Nós sabemos que nossas regras não constrangem a liberdade, ao contrário, elas são limites que estabelecemos para ampliar o campo de ação para nos tornar cada vez mais livres.

Ir o mais longe possível naquilo que podemos, essa é a tarefa propriamente ética. É isso que a Ética toma como modelo para o corpo; pois todo corpo estende sua potência o mais longe que ele pode. Em certo sentido, todo ser, a cada instante vai o mais longe que pode, ‘o que pode’ é o seu poder de ser afetado, que é necessariamente e constantemente preenchido pela relação desse ser com os outros”

– Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 186

– Banksy

 

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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franciscosandrolima13
7 anos atrás

Excelentes textos

Rui Lira
Rui Lira
7 anos atrás

Beleza, Rafael. Obrigado pela generosidade. Valeu o encontro com pensamentos a um só tempo integradores e libertários, Sigamos a rota da luz. Belo trabalho. Indispensável nos nossos tempos nebulosos.

Bóris
Bóris
Reply to  Rui Lira
6 anos atrás

Excelente Texto! Inspirador!

Pedro Dumont
Pedro Dumont
7 anos atrás

Por isso que quando falamos em Anarquia, pensamos em uma coisa não dita, a ética “anarquista” ou só ética, que é essa emancipação da liberdade e potência de cada ser humano. Em contra partida da: “minha liberdade vai até onde vai a sua”, inspiramos-nos na: “a liberdade do outro estende a minha ao infinito.”

Jean
Jean
7 anos atrás

Muito interessante, senti um grande prazer em ler esse texto.

Christian
Christian
6 anos atrás

A moral pos-moderna, é muito mais castradora, coitadista, vitimista, do que a moral católica vigente no brasil ate o seculo 19. Isso porque no passado ainda se conservava valores de um passado ainda mais distante que aquele passado.