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Quem observar com cuidado essas coisas (na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em pouco tempo, dirigir a maioria de suas ações sob o comando da razão”

– Espinosa, Ética V, prop 10, esc

Vivemos mergulhados nos afetos, eles são consequência de termos um corpo em constante variação, para uma maior ou menor perfeição. Essas mudanças constituem nosso corpo, e indicam caminhos que o homem pode seguir. Nossa vida é um mapa de afetos onde precisamos traçar corretamente uma longitude e latitude.

Espinosa ensina que uma ética só é possível com e no interior dos afetos, sem negá-los ou reprimi-los. Não foi à toa que o filósofo holandês se propôs então a estudá-los a fundo, ao ponto de propor uma ciência para melhor entendê-los (veja aqui). Fortalecer os afetos alegres e enfraquecer os afetos tristes, é aqui o ponto em que a Ética de Espinosa se torna uma ode à alegria.

Mas como sair da servidão humana e encontrar a liberdade? Como tornar-se causa adequada de si mesmo? Nascemos impotentes e inconscientes das causas que nos levam a desejar e agir. Somos uma parte tão pequena da natureza, ela nos carrega de um lado para o outro como folhas ao vento. Vivemos ao sabor da fortuna, da sorte, do acaso. Enfim, somos impotentes para agir em nossa própria vida.

Diríamos então que o primeiro passo é entender, afinal, que o conhecimento é o mais potente dos afetos. Em vez de maldizer a vida, o corpo, os sentimentos, Espinosa busca compreender: por que agimos assim? A criança, o tolo, o ignorante, acham que é por livre-arbítrio que se deseja o que se deseja, mas em sua impotência apenas não conseguem vislumbrar as causas de seu desejo, e por isso vivem enterrados na servidão e na tristeza, completamente dominados por suas paixões.

Nathalie Maquet

Se a mente é capaz de pensamento racional (segundo gênero do conhecimento), e a mesma está mergulhada no corpo, então ela é capaz de encontrar as verdadeiras causas do porquê agimos de determinada maneira. O desejo entende as causas de seu próprio desejo. A razão pede que busquemos o que é útil, o que convém com nossa natureza, o que é bom, para enfim encontrarmos a liberdade. Nossa mente é este desejo de conhecer e o esforço para concatenar estes pensamentos da maneira mais adequada, o conhecimento e a razão são nossa própria essência.

Sendo assim, conforme nosso conhecimento dos afetos aumenta, aprendemos aquilo que nos convém, entendemos aquilo que há de comum entre nós e o mundo, só podemos nos tornar cada vez menos submissos às causas externas. Conhecimento é poder! Mas o que pode a razão contra as paixões? Se, diz Espinosa, um afeto só pode ser refreado e moderado por outro afeto, então a razão precisa propor afetos que sejam mais fortes que as paixões que experimentamos quando somos conduzidos pela forças exteriores. Os remédios dos afetos são resultado de uma mente internamente disposta e potente o bastante para moderar este conflito.

Aqui, depois de todo o percurso ético, começamos a encontrar algumas respostas. Tudo se resume em como nossas ações podem se tornar mais fortes que as paixões. É preciso inverter as relações de força para sair da servidão e alcançar a liberdade. Não se trata de suprimir as paixões e alcançar um estado iluminado, apático e impassível, isso, como já vimos, é impossível. A intenção de Espinosa é uma análise, uma dosagem e uma moderação dos afetos pela razão. Este é o caminho, e só queremos moderar as paixões com a razão porque ela possui um conhecimento maior das noções comuns, selecionando os afetos que melhor nos convêm, e, portanto, aumentando nossa potência de existir.

Vida, conhecimento, virtude, razão, potência, alegria, beatitude são, para Espinosa, a mesma coisa. Isso é muito importante de ser constantemente repetido porque nada irritava mais o filósofo holandês do que aqueles que exaltavam a ignorância como uma bênção! Só o tolo acredita que conhecimento e sofrimento são diretamente proporcionais (veja aqui). Por isso Espinosa propõe entender nossos afetos, para nos tornarmos mais potentes e consequentemente alcançarmos uma felicidade mais concreta.

Eis os cinco remédios de Espinosa para melhor compreender, moderar, dosar e refrear os afetos:

Formar conceitos claros e distintos

Não há nenhuma afecção do corpo da qual não possamos formar algum conceito claro e distinto”

– Espinosa, Ética V, prop 4

Intelecto e extensão são expressões de uma única e mesma substância: Deus. Sendo assim, a ordem e conexão das ideias é a mesma ordem e conexão dos corpos. Isso significa simplesmente que a mente percebe os corpos que o afetam: a mente é a ideia de um corpo que é afetado. Deste modo, alguns corpos estão mais em concordância que outros corpos. Aquilo que existe de comum entre um corpo e outro pode ser conhecido claramente. No começo de maneira abstrata e geral, mas aos poucos, de modo específico e claro.

Seguindo este raciocínio, a mente pode formar um conhecimento claro e distinto entre o que existe de comum (as relações de movimento e repouso, o ritmo, a vibração) entre um corpo que a afeta e seu próprio corpo. O conhecimento parte do comum, daquilo que compartilhamos e por ressonância, por afetos de alegria, pode ser conhecido claramente. Ou seja, pela potência de pensar, podemos conhecer os afetos.

Reinterpretar e transmutar afetos paixões

Um afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma ideia clara e distinta”

– Espinosa, Ética V, prop 3

O segundo remédio diz que é possível separarmos uma paixão de sua causa exterior e a ligarmos a outros pensamentos, mais adequados. O amor e o ódio, por exemplo, que são afetos com causas exteriores, podem ser ligados a outros pensamentos. Podemos desfazer os laços associativos que ligam a alegria e a tristeza às ideias imaginativas.

Não é o corpo exterior, abstratamente, a causa do meu amor ou ódio, é a minha relação de composição com aquele corpo naquele momento. Vivemos no conhecimento confuso da imaginação, mas podemos reinterpretar nossa vida passional, clarificar o máximo possível nossas paixões, identificando as causas imaginativas. Não se ama algo ou alguém, se ama uma relação, uma composição. Quanto mais conhecemos um afeto, mais ele está sob nosso poder.

Ordenar e concatenar os afetos

Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos que são contrários à nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto”

– Espinosa, Ética V, prop 10

É necessário um pouco de tempo, e um pouco de calma, para que os afetos que provêm da razão se tornem mais potentes do que aqueles que são apenas paixões. O terceiro remédio diz que quando não estamos tomados por afetos que são contrários a nós, há um esforço desimpedido da mente para compreender. Isso porque a mente sempre se esforça por imaginar coisas que a alegrem e para pensar racionalmente.

Uma alegria é sempre mais forte que uma tristeza e um bom encontro é aquele que faz durar, isso Espinosa afirmará com todas as suas forças ao longo de toda a sua obra. É um trabalho ininterrupto e incansável de ser feliz em ato. Por isso, com o tempo, o conhecimento mais seguro e certo das noções comuns que formamos tende a se sobrepor às imaginações confusas que fazemos dos afetos.

Nathalie Maquet

Dispor-se a ser afetados de muitas maneiras: plura simul

É útil ao homem aquilo que dispõe seu corpo a poder ser afetados de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores”

– Espinosa, Ética IV, prop 38

O quarto remédio é um dos mais importantes. Um corpo capaz de muitas coisas é igualmente uma mente capaz de pensar muitas coisas. A mente padece com afetos que a levem a pensar menos ou apenas em um objeto. Com este remédio, Espinosa nos quer fazer entender sobre as várias causas exteriores que causam nossos afetos, sempre múltiplas e sempre presentes. O corpo é exatamente esta potência para o múltiplo, isso significa que precisa igualmente raciocinar sobre o múltiplo, pensar e compreender uma grande quantidade de causas que o constituem e o fazem agir. O filósofo chama esta capacidade de plura simul, ou, aptidão para o múltiplo.

Um afeto que determine a mente a considerar uma grande quantidade de objetos é mais útil que um afeto que fixe a mente em apenas uma ideia. Esforço de ampliação, vontade de superação, como tentáculos que se estendem sobre a vida para melhor senti-la. Este é o esforço, que em latim chama-se conatus, do qual tanto nos fala Espinosa, uma vontade de ir além, de ampliar-se, de crescer. Estes encontros permitem ao homem agir sobre grande quantidade de coisas ao seu redor. E quanto mais ele pensa, mais age, e vice-versa.

Moderar os afetos para agir da maneira correta

Por meio desse poder de ordenar e concatenar corretamente as afecções do corpo, podemos fazer com que não sejamos facilmente afetados por maus afetos” – Espinosa, Ética V, prop 10, esc

O corpo é uma potência de ser, uma capacidade de afetar e ser afetado, uma afirmação; a mente é uma potência de pensar, de criar noções comuns, de concatenar os afetos que a constituem (como ideia do corpo) e entendê-los. A alma dotada de virtude, força, pode ordenar estes afetos exteriores de forma a refreá-los mais do que se tivesse apenas ideias confusas.

A vida afetiva conecta-se cada vez mais às regras da razão e elabora estratégias para estarmos mais preparados a buscar o que é bom e evitar o que é ruim; regular nossos encontros e enfrentar infortúnios moderando nossos afetos com ajuda da potência do pensamento. Um conhecimento claro e distinto suprime as paixões e permite afetos de alegria. Espinosa estava certo: conhecimento, liberdade, beatitude, virtude e felicidade são diretamente proporcionais.

Segue-se disso que padece ao máximo aquela mente cuja maior parte está constituída por ideias inadequadas, de maneira tal que ela é reconhecida mais por padecer do que por agir. E, inversamente, age ao máximo aquela mente cuja maior parte está constituída por ideias adequadas, de tal maneira que, ainda que haja nesta tantas ideias inadequadas quanto naquela outra, ela é, entretanto, reconhecida mais por aquelas ideias que se atribuem à virtude humana do que por aquelas que revelam a impotência humana”

– Espinosa, Ética V, prop 20, esc

Texto da Série:

 

Ética

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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8 Comentários
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Fatima Rodrigues
Fatima Rodrigues
7 anos atrás

Muito interessante.

Gerson
Gerson
7 anos atrás

Bom saber que há o remédio e não há cura para os afetos.

daniel
7 anos atrás

excelente !!!

Ricardo Tavares
6 anos atrás

Nem tenho comentários para expressar minha satisfação com tanta beleza intelectual, beira ao sublime tudo isso. Isso que eu chamo de arte literária!

Aparecida Duque
Aparecida Duque
4 anos atrás

Caro Rafael, boa madrugada… Seus textos são maravilhosos. Quero lhe fazer uma pergunta: você entende que Spinoza teve extraordinária intuição e que conseguiu abordar temas diferentes e universais – no tempo e no espaço, com uma mesma abordagem/definição? É assim que o leio. Por exemplo, estou me tratando de um câncer e a leitura de Ética virou meu livro de cabeceira. Encontrei nele uma nova visão de doença e um otimismo que eu não experienciara antes. Estou firme no propósito de alcançar o terceiro gênero de conhecimento. Acho que estou conseguindo. Gostaria que vc me falasse a respeito da aplicação… Ler mais >

Douglas Marques
3 anos atrás

Gratidão, Rafael. Esse texto iluminou minha noite.

Inaudito
Inaudito
3 anos atrás

Aqui, depois de todo o percurso ético, começamos “e” encontrar algumas respostas.

os.menezes@hotmail.com
os.menezes@hotmail.com
2 anos atrás

Quero agradecer esse auxílio luxuoso em Espinoza e a ética me ajuda no entendimento da obra de Espinoza; daqui de Salvador, BA.