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O longo tópico da liberdade é discutido por Espinosa e Skinner. Claro que em nosso ensaio por um behaviorismo espinosista em muitos momentos realizamos torções conceituais para melhor relacionar estes dois autores, mas no caso da liberdade a definição negativa é exatamente a mesma: não há livre-arbítrio. Os atos de vontade são ilusões causadas pela ignorância das causas. O homem, como parte da natureza, não tem como colocar-se fora da corrente de causas e efeitos. Enfim, como diz Espinosa, ele não é um “império dentro de um império” (EIII, pref.). Há apenas uma ordem e conexão das coisas, que é a mesma que a ordem e conexão das ideias, que é a natureza, em si mesma, se efetuando continuamente.

Quem diz o contrário, apenas inventa palavras para explicar aquilo que não entende. Somos supersticiosos, temos essa necessidade urgente de encontrar respostas para nossas perguntas, mas às vezes nos atropelamos e trazemos soluções que não resolvem em nada a questão, pelo contrário, apenas a tornam mais misteriosa e difícil de explicar. Ao encontrar respostas fáceis para questões complexas, ainda nos mantemos na ignorância.

Os homens enganam-se ao se julgarem livres, julgamento a que chegam apenas porque estão conscientes de suas ações, mas ignoram as causas pelas quais são determinados. É, pois, por ignorarem a causa de suas ações que os homens têm essa ideia de liberdade. Com efeito, ao dizerem que as ações humanas dependem da vontade estão apenas pronunciando palavras sobre as quais não têm a mínima ideia. Pois, ignoram, todos, o que seja a vontade e como ela move o corpo. Os que se vangloriam do contrário, e forjam sedes e moradas para a alma, costumam provocar o riso ou a náusea”

– Espinosa, Ética II, prop 35, esc

Qual seria a definição de liberdade para Espinosa? Livre-arbítrio para escolher? Não, o livre-arbítrio é apenas uma artimanha inventada para culpar o homem caso não siga as “leis divinas” ou, hoje, as “leis do progresso da humanidade”. Vontade? Não. O homem responderia a uma finalidade? Com certeza não. Todas estas respostas não explicam o porquê dos atos de cada ser humano. São respostas que não respondem nada. Liberdade e vontade são coisas totalmente diferentes. Encontro fortuito não é liberdade.

Precisamos retornar ao corpo, aos bons e maus encontros para definir o conceito de liberdade. Ela deixa de ser uma escolha entre possíveis para se tornar a capacidade do corpo de ser afetado pela multiplicidade de afetos e ligar-se àquilo que pode. Não mais livre-arbítrio ou escolha voluntária, mas sim a necessidade da natureza. Liberdade é quando só há um caminho para seguir! A Liberdade é, segundo Espinosa, a potência que o ser tem de efetuar-se, de atuar segundo sua própria essência, sem ser levado de um lado para o outro pelas forças externas.

Esta definição pode parecer muito estranha para ouvidos metafísicos. Liberdade é ter apenas uma escolha? Ora, Deus, ou a natureza (ou o ambiente), tem apenas um caminho a seguir, a de sua própria necessidade. Sendo parte da natureza nossa liberdade pode ser apenas a do encontro necessário entre organismo e ambiente. Liberdade não é escolher entre o produto a, b ou c, esta falsa liberdade submete-se às possibilidades pré-determinadas de fora. Só nos sentimos livres quando nossas forças se ligam ao que podem. Por isso a sensação de liberdade é diferente da liberdade real! Ausência de coerção traz a sensação de liberdade, mas reforço positivo e liberdade não são sinônimos! Uma ética da liberdade se faz depois da seleção dos comportamentos, depois de uma clínica da experimentação. Livre é aquele que preenche seu ser, não aquele que tem várias opções ao seu dispor.

O que o existencialismo chamava de angústia da liberdade, a impossibilidade de escolher todas as possibilidades, é a forma mais limitada de pensar este conceito. Como vemos em Espinosa e Skinner, liberdade não é opção, possibilidade, contingência, porque nossa essência é única, a nossa singularidade está dada. Na imanência a liberdade só pode ser descrita como um ser que efetua sua natureza. Angústia de liberdade é um oximoro perigoso para pensarmos em uma liberdade real. Liberdade é a potência de ser; é a ideia clara, não a ilusão de uma vontade. Identidade entre necessidade e liberdade. Ontologia do necessário! Liberdade não é a dúvida de qual opção escolher, mas a certeza de que se quer exatamente aquilo. Liberdade é a afirmação do plenamente necessário.

Aliás, esta é uma questão tanto para Espinosa quanto para Skinner, precisamos tomar cuidado com os bons encontros que nos fecham para outras possibilidades, Skinner o chama de escravo feliz. Já tratamos desta questão anteriormente. Bom encontro e reforço positivo não são sinônimos (veja aqui). Na servidão perdemos a capacidade de afetar e ser afetado, há a ilusão de que se é livre mas há um fechamento da subjetividade para um estímulo único, diminuição do conatus, do repertório comportamental. Qual a saída? Autoconhecimento. Por isso nos dedicamos tanto no texto anterior para esclarecer a importância de uma clínica da experimentação! De vez em quando é precisa experimentar, variar o comportamento, para se ter certeza de que ainda é livre. Quem não se move, não sabe as correntes que o prende. Vemos então como a servidão mais perigosa é aquela que se confunde com a sensação de liberdade!

Para os homens livres, o problema não vem do controle, mas de certos tipos de controle, e só poderá ser resolvido se nossa análise levar em consideração todas as consequências”

– Skinner, Mito da Liberdade

Para Espinosa, liberdade, é ser causa de si e servidão é quando somos causa parcial do que nos acontece, ou seja, a causa é exterior (veja melhor aqui). Liberdade é não ser instrumento de outro. Apesar do uso de interno/externo, essa concepção pode aproximar-se da de Skinner. Ele também não acredita no livre-arbítrio porque o organismo é um conjunto único, resultado de processos de variação e seleção filogenética, ontogenética e cultural. Skinner entende a liberdade como um corpo que se organiza de forma tal que tem controle sobre o ambiente, em vez de ficar à mercê dos estímulos que o poderiam afetar.

Alcança-se uma espécie de liberdade através de formas relativamente simples de comportamento, denominadas reflexos. Uma pessoa espirra para livrar suas vias respiratórias de substâncias irritantes. Vomita para livrar seu estômago de alimentos indigestos ou venenosos”

– Skinner, Mito da liberdade, p. 25

Os reflexos inatos já são uma maneira do organismo apropriar-se do mundo com mais segurança. Através destas associações, e do que a análise do comportamento definiu como operante, a possibilidade de interagir com o ambiente aumenta exponencialmente. O repertório comportamental de um organismo definirá o seu grau de liberdade: somos mais livres com um canivete suíço na mão do que com uma pedra lascada. Sim, aumentando nossa capacidade de afetar e ser afetado, e selecionando o melhor comportamento nas mais diversas situações possíveis. Capacidade de agir, o comportamento operante em sua relação com o ambiente dará a prova de um grau maior ou menor de liberdade. Repetimos, liberdade não é opção, é certeza.

Não precisamos usar a palavra de Espinosa, essência, mas ainda podemos ver como a liberdade vem de uma certa forma de ser afetado, que fala diretamente ao modo do indivíduo de se relacionar com sua realidade. A liberdade é a capacidade do indivíduo de atuar no mundo, sem ser constrangido ou coagido por outras forças, é a sensação de que sua potência aumenta. Ele só é passivo na ignorância; a partir do momento em que entende melhor a natureza (o ambiente) ele pode se tornar produtor de si mesmo, modificando o ambiente à sua volta. Liberdade não é ter o que se quer a hora que se quer, é o saber fazer e, também, o fazer com. Sair da servidão é sair da ilusão de liberdade, e isto precisa ficar claro: estar solto e sem rumo não é liberdade, é a impotência do corpo de ligar-se ao que pode!

A liberdade nos leva ao encontro do outro. Diferente da servidão, que gera uma subjetividade dilacerada, separada do mundo, clivada, afastada do que pode. Não atuar em nossa realidade, não pular no mundo, é um ato de esquiva, isso é óbvio porque já sabemos como nosso ambiente pode ser muito coercitivo. Por isso tantas vezes a definição de liberdade passa a ser simplesmente negativa: ausência de dor, ausência de perigo, ausência de deveres. Mas isso é muito pouco! Viver de reforço negativo é miserável. Não podemos fugir de nossa busca por liberdade, porque ela define quem podemos ser na relação com o outro. Recusar-se a participar ainda é, de alguma forma, ser cúmplice. Mais do que ausência de coação, queremos transformar o mundo à nossa volta, queremos tecer relações de confiança e potência, com contingências reforçadoras, onde poderemos colar nossa essência na nossa própria ação. Liberdade não é uma questão de Self forte ou fraco, nem de resolução de complexo de Édipo, mas de uma relação mais coerente com o ambiente.

Mas isso demanda tempo, não acontece da noite pro dia. “Ninguém é menos livre do que um recém-nascido” (Skinner, p. 172), e Espinosa diz o mesmo. Isso porque o ser humano precisa crescer e se fortalecer antes de atuar plenamente em seu meio. Não é “dominar”, mas sim “se relacionar” com seu meio, não é uma relação de poder, mas de potência. Uma criança é ainda muito passiva em relação ao seu meio, mas aquele que aprendeu a discriminar à sua volta a melhor maneira de ser e agir, escolher seus encontros, este sim pode se considerar livre. Para escolher os encontros é preciso experimentar o mundo, se deixar ser afetado por ele. Quanto mais conhecemos, quanto mais nos conhecemos, mais sabemos que há apenas um único caminho para seguir, o da potência que se afirma em nós. Um corpo e uma mente ativos! Liberdade não é um corpo dominando a mente, muito menos uma mente dominando um corpo. Ela se faz sempre em conjunto. Esta é uma grande contribuição da filosofia de Espinosa, mente e corpo se libertam juntos. Vemos como cada conceito está próximo um do outro, uma clínica da experimentação está diretamente associada com uma ética da liberdade. Espinosa e Skinner se encontram com muita força nestes dois pontos.

Sair da passividade, encontrar aquilo que a própria potência em nós pode. Quanto mais um organismo amplia sua possibilidade de se comportar, mais livre ele é porque os comportamentos mais efetivos serão selecionados pelo ambiente. Quanto mais nosso repertório está seguro de si e dá conta da relação com o mundo, mais livre nós somos. Liberdade é uma certeza, não uma opção. Liberdade é a segurança de se efetuar, não vários produtos à disposição em uma vitrine de shopping. Liberdade, em Skinner e Espinosa, independe do controle, que sempre existe e sempre existirá, ela atua com ele, nele. O conhecimento de si e do mundo é a própria possibilidade de controlar o controle. Queremos ser livres, mas em Espinosa e Skinner liberdade e necessidade entram em conjunção. Liberdade é saber nadar no mar de contingências, afetos, não o fato de haver contingências ou afetos. A liberdade em Espinosa e Skinner não poderia ser mais clara: precisamos enfrentar a superstição e o conhecimento imaginativo, atravessando as ondas e aprendendo a nadar com o conhecimento racional e experimental. Controle e autocontrole para encontrar não a nós mesmos, mas os melhores encontros possíveis. Depois da rebentação, o mar.

Revisão: Johny Brito (johny.brito@gmail.com)

 

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Rafael Trindade

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Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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flavio dos santos
flavio dos santos
7 anos atrás

Muito bom! Texto muito bem elaborado, e reflexivo. Parabéns!

Inaudito
Inaudito
3 anos atrás

Ele só é passivo na ignorância; a partir do momento em que entende melhor a natureza (o ambiente) ele pode se “torna” produtor de si mesmo, modificando o ambiente à sua volta.