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O que será, que será?
Que vive nas ideias desses amantes”

– Chico Buarque

De onde mais viria o termo Aphrodisia senão de Afrofite? Deusa grega do amor, ligada à sexualidade. Da mesma forma que Afrodisíaco seria então “obras de Afrodite“, atos que remetem a Afrodite. Mas não estamos aqui na classificação, muito menos na decifração. Afrodite não nos deixou dez mandamentos para seguir, muito menos criou um lugar onde seríamos jogados caso não seguíssemos suas prescrições. Afrodite não disse que gestos se deve fazer, quais se deve evitar, que posição são permitidas, quais são proibidas nem nada deste gênero. Enfim, e para que fique claro, Afrodite é uma deusa grega, não cristã.

Os aphrodisia são atos, gestos, contatos, que proporcionam uma certa forma de prazer”

– Foucault, Uso dos prazeres, p. 53

A aphrodisia não vai dizer do objeto do desejo, como um objetivo a ser alcançado, nem da origem do desejo, procurando estabelecer o que o motivaria ou de onde nasceria. A questão ética se debruça muito mais sobre a dinâmica do desejo, sobre seu modo de circulação, um circuito do desejo, como ele se liga. Reparem, não perguntaremos: quais desejos? Quais prazeres? Mas sim por sua relação entre, sua relação de forças.

Os gregos não estavam preocupados com o ato em si, mas seu modo de inserção em uma vida que busca afirmar-se como um todo. Dentro de uma estética da existência, como os prazeres e a sexualidade se inserem? Não é um ontologia da falta, muito menos o proibido e do permitido, mas uma questão de intensidade.

A divisão que se faz é entre o menos e o mais: moderação ou incontinência”

– Foucault, Uso dos prazeres, p 57

Ou seja, os gregos experimentavam a si mesmos, dando, muitas vezes, provas de comedimento. Ora, faz sentido em uma cultura onde não se traça uma linha bem definida entre desejos “naturais” e “não-naturais”. Se tudo é natural, então é apenas uma questão de medida. Tudo é uma questão das doses, do mais e do menos.

Por mais natural e mesmo necessária que possa  ser, ela não é menos objeto de um cuidado moral; ela pede um delimitação que permita fixar até que ponto, e em que medida, é conveniente praticá-la”

– Foucault, Uso dos prazeres, p. 52

George Frederick Watts – Genius of Greek Poetry

Mas não podemos negar também que esta ética foi escrita, pensada e praticada por homens. Homens livres, mais precisamente, o que exclui escravos, estrangeiros e mulheres e crianças. Ou seja, eles possuem uma ética que gira em torno deles próprios, colocando as mulheres muitas vezes como objeto entre objetos, como a casa, os escravos e outras posses (veja aqui). O mesmo vale se pensarmos no caráter “ativo” e “passivo” da relação homossexual (veja aqui). Aos homens cabia tomar um papel ativo, aos moços, mulheres e escravos, cabia o papel passivo.

O que hoje é absurdo parecia a eles ser justificado com o poder que os “homens livres” exerciam na cidade. A liberdade, a atividade, a virtude eram todas encerradas na mesma figura, o homem, aquele que fala na ágora e que decide sobre o futuro de sua cidade. E se pensarmos hoje? Vemos como pouco a pouco esta imagem vem se diluindo em nossos tempos (não sem muita luta). Então, qual a relevância do conceito de Aphrodisia? Como o usos dos prazeres, tão bem elaborado pelos gregos, pode ser útil hoje a cada um de nós?

Se tratamos aqui de forças naturais, uma atração, um impulso, uma vontade que nos move, então não podemos condená-la como errada, antinatural, pecado, ou qualquer outra conotação moral. É tudo uma relação de forças que se estabelece, um agenciamento. A respeito da aphrodisia, os gregos se perguntavam: convém? A força que nos move, ela convém a nós como um todo? Em que situações, quando o desejo transborda, ele nos subordina?

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá”

– Chico Buarque

São estas perguntas que são necessárias de serem feitas: qual é a relação que estabelecemos com o prazer sexual? Somos parte ativa ou passiva? Essa pergunta deve ser traduzida como: somos donos de nossos prazeres? Nós nos servimos dos prazeres ou eles se servem de nós? Ou seja, quando o excesso vai muito além da necessidade, precisamos redobrar a atenção.

O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo”

– Chico Buarque

Enfim, a aphrodisia é a substância ética, os gregos se debruçaram sobre ela não para delimitar o que é certo e errado, não para traçar limites codificáveis. Nem “dez mandamentos vão conciliar”, “nem todos os unguentos”, essa era a preocupação dos gregos, a aphrodisia não deve ter um governo externo, de uma moral. A busca, o esforço, é por estabelecer uma relação ética com a aprhodisia, para constituir uma ética da existência.

A reflexão moral sobre os aphrodisia tente muito menos a estabelecer um código sistemático que fixaria a forma canônica dos atos sexuais, traçaria a fronteira das interdições, e distribuiria as práticas de um lado e de outro de uma linha de demarcação, do que a elaborar as condições de moralidade de um ‘uso’: o estilo daquilo que os gregos chamavam de chresis pahrodision, o uso dos prazeres”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 67

Texto da Série:

Cuidado de Si

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Andréa
Andréa
2 anos atrás

Super interessante!!

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