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Não há nada que confunda mais os homens que a crença em uma ordem moral no mundo. Nela, respostas vêm antes das perguntas. A crença em uma Lei transcendente, imposta por um ditador divino serve para dar consolo frente aos mistérios do universo. A vontade de um ser superior, que comanda ao seu bel-prazer e impõe de acordo com seus caprichos. Já disse Espinosa, “a que ponto o medo ensandece os homens” (Espinosa, Tratado Teológico Político, pref). Seguimos como cegos na estrada, conduzidos por outros cegos que dizem conhecer o caminho. Estamos perdidos!

Quem formulou tais leis? Como sabemos quais são as melhores? Quem interpreta os textos, os cânones, as passagens, as leis? Vivemos em um formalismo inquestionável, onde perguntar, sim, ofende. Já podemos ver como a ordem moral do mundo é inseparável de uma questão de poder. Juízes, pastores, autoridades dos mais variados tipos se encarregam de levar a verdade, a justiça e a palavra divina para nós, pobres mortais e pecadores.

A superstição nasce do medo, a superstição nasce da ignorância das causas e efeitos, a superstição nasce do abuso dos exploradores e da complacência dos explorados. O medo de males futuros e a esperança de felicidades que possam advir é o solo fértil onde a superstição dá seus mais numerosos frutos. Podemos perceber então que vivemos mergulhados na superstição! Completamente submersos. Esperança e medo fazem parte de nossos afetos (bio)políticos e já não reconhecemos nossa vida sem eles. Em nossa ignorância das causas e efeitos, buscamos o que é melhor para nós, mas sempre de maneira confusa, torta, desordenada. Desejamos sem saber a causa de nossos desejos e vivemos sem saber como viver bem.

Poucas coisas Espinosa e Skinner abominavam mais que a superstição. Sim, em sua busca pelo conhecimento, ponto de afirmação, eles execravam a superstição e a ignorância. Mais uma vez podemos juntar estes dois pensadores para procurar entender a superstição e como diminuir seus efeitos sobre nossas vidas. Na servidão, os homens pulam no abismo pensando que estão voando; na crença, agradecem a queda como bênção. Não há nada mais triste que a superstição e nada que cause mais servidão que a tristeza.

Quando nos faltam os favores da fortuna, com frequência pelos excessos de nossa conduta, culpamos de nossos desastres o sol, a lua, as estrelas, como se fôssemos patifes por fatalidade, tolos por compaixão celeste, velhacos, ladrões, traidores por predomínio esférico, bêbados, mentirosos, adúlteros, por força da obediência a influências planetárias”

– Espinosa, Ética IV, pref.

Quando, em texto passado, nos perguntamos “O que pode um corpo?“, precisávamos nos preparar para uma resposta desagradável. Se o comportamento é o principal objeto de estudo do behaviorismo, isso não significa que ele se estabeleça sempre da melhor forma possível. Móvel, adaptável, modelável, permeável, o comportamento faz o intercâmbio entre o organismo e o ambiente. Esta relação, esta interação entre os estímulos do ambiente e as respostas seleciona os comportamentos de um organismo.

Skinner dirá (apoiando-se em Darwin) que a seleção filogenética, ontogenética e cultural produziram a natureza humana. Sendo o comportamento operante o grande responsável pela seleção da grande variabilidade de comportamentos possíveis. Até aqui não dissemos nada que não tenha sido dito em outros textos. Mas, em que ponto algo dá errado? Em que momentos caímos na servidão e na superstição?

O comportamento supersticioso é fortalecido porque foi acidentalmente associado a uma consequência. Quebra de nossas expectativas: nem todos os comportamentos selecionados contribuem para nossa sobrevivência (assim como nem todos os aspectos da evolução geram organismos saudáveis e fortes). Espinosa diria: como vivemos com um conhecimento imaginativo (primeiro gênero do conhecimento), em nossa confusão, muitas vezes fazemos o pior imaginando estarmos fazendo o melhor para nós.

Isso acontece porque somos apenas uma parcela do universo, uma parte ínfima, superada por outras muito mais poderosas que nós. Nossa capacidade de conhecer o mundo é reduzidíssima; nossa visão, nossa audição, nosso olfato são todos muito limitados. Não surpreende que nos enganemos com tanta frequência. O homem cai na superstição porque não consegue conhecer adequadamente a cadeia de causas e efeitos que se estabelece entre a natureza e ele.

Skinner não explicaria pela causa e efeito, mas pela tríplice contingência. Quanto menos controle temos sobre o ambiente, maiores as chances de se desenvolverem comportamentos supersticiosos. Prova que a seleção por consequências não necessariamente leva para o melhor lado. Se não conseguimos estabelecer as variáveis, temos dificuldades de entender porque nos comportamos. A superstição mostra apenas que somos uma parcela muito pequena do mundo, muito impotentes, muito limitadas.

A diferença está entre a necessidade e a contiguidade. O que Espinosa provavelmente chamaria de causa ativa e passiva:

A superstição pode acontecer por reforço positivo: estou andando na rua e acho uma nota de dez reais; resultado imediato, me alegro e pego o dinheiro; possível comportamento supersticioso gerado: passo a andar mais vezes por aquela rua e olhar mais vezes para o chão. Meu time favorito ganha o jogo de futebol quando estou usando minha cueca azul; resultado imediato, fico feliz e comemoro, possível comportamento supersticioso gerado: passo a usar sempre a mesma cueca para assistir aos jogos, achando que ela me dá sorte. Isso mostra como o reforço positivo não é necessariamente bom.

Mas também pode ocorrer por reforço negativo ou punições. Vejo um gato preto na rua e logo em seguida sou assaltado, resultado imediato: fico com medo, triste, com raiva, comportamento supersticioso possível, passo a achar que gatos pretos dão azar e os evito Neste caso vemos como comportamentos supersticiosos também podem ser verbalmente controlados; é muito comum que mesmo pessoas que nunca tiveram uma associação do gato preto com estimulação aversiva tenham esse mesmo tipo de crença. Segundo exemplo: faço a prova com uma caneta azul e tiro uma nota baixa, resultado supersticioso, começo a usar canetas pretas para fazer provas. Isso mostra como a punição não ensina nada e é incapaz de manter qualquer tipo de comportamento. Com relação ao reforço negativo, precisamos chamar atenção para o excesso de esquiva que cria superstição por não ensinar realmente como resolver o problema, apenas o que fazer para evitar ser punido.

A emissão de um comportamento supersticioso simplesmente não aumenta a probabilidade de reforço! Isso é tão óbvio e simples quanto frequente. Estas respostas foram reforçadas acidentalmente e o organismo passa a se comportar como se fosse ele o responsável pelas modificações ambientais que, na verdade, ao menos naquelas respostas específicas, independem completamente do que o organismo faz. O homem ainda se acha a medida de todas as coisas, como se gatos, estrelas e roletas de cassinos existem para satisfazer ou frustrar suas vontades.

Os exemplos são simples, é verdade, e podem até parecer engraçados. Mas em experimentos em laboratório vemos como pombos fazem coisas aleatórias quando são aleatoriamente reforçados, e na vida real as coisas podem ser ainda mais complicadas. Emitimos comportamentos supersticiosos diariamente, e temos muito medo que as coisas possam dar erradas se não os emitimos com frequência.

Uma boa análise de contingências evita a superstição; isso significa que uma boa terapia identificaria comportamentos deste tipo e seria capaz de colocá-los em extinção. A análise do comportamento preocupa-se com a identificação e controle de variáveis das quais o comportamento é função. Ora, talvez as estrelas no céu não tenham nenhuma influência sobre nosso comportamento aqui na terra, então não precisam entrar dentro de nossas análises. Será?

A superstição é mantida por reforço social. Aqui retomamos Espinosa para notarmos como o desejo fica reduzido e estereotipado em códigos de conduta rígidos e supostamente verdadeiros e universais. A superstição não apenas procura explicar o mundo, mas exige também um modo de vida regulado pela ignorância e pelo medo! Neste estado, não somos donos de nós mesmos e não podemos agir conforme nossa natureza. O conatus, buscando a satisfação e o bem estar, pode encontrar a insatisfação e desconforto, mas acomodar-se caso não encontre outra saída. O modo de vida torna-se natural, eterno, expressão do desejo divino.

Mas em nosso dia a dia não percebemos estes comportamentos? Não vemos que ainda estamos mergulhados nas sombras da incompreensão? Sim e não. A resposta não pode ser simples porque os comportamentos selecionados, mesmo que não sejam os melhores, permitem ao sujeito viver, manter sua vida, continuar existindo dentro de uma normalidade e segurança mínimas. Ao mesmo tempo, percebemos diariamente que a vida que levamos não é o bastante, não satisfaz, não contenta. A superstição transforma a ignorância em questão de direito ao prender-se ao mistério. “A vida é assim mesmo“, “Deus escreve certo por linhas tortas“, “fazer o quê?“.

É difícil distanciar-se desta condição quando somos impedidos de experimentar e questionar. As autoridades odeiam serem questionadas! Desde crianças ouvimos de nossos pais e conhecidos como devemos nos comportar e não nos são dadas as consequências de comportar-nos diferentemente. Dizem que não devemos questionar as doutrinas, as leis, a tradição, os preconceitos e o status quo, apenas aceitá-las. A criança que pergunta demais geralmente recebe a resposta “porque sim” como fundamento último. Como se o asilo na ignorância justificasse alguma coisa!

Como sair deste estado? Na servidão vivemos ao acaso dos encontros; ou seja, nessa superstição não somos causa ativa de nossa felicidade, vivemos à mercê, passivos, esperando pelo melhor e temendo o pior. Estamos longe da liberdade porque nos afastamos da experimentação e da produção de novos afetos! Confiamos no acaso porque não sabemos o que está e não está em nosso poder. E como poderíamos entender o funcionamento do mundo sem experimentá-lo? Hoje, quanto mais conhecemos do mundo, quanto mais sabemos de onde vêm as doenças, como a natureza funciona, como o comportamento humano funciona, menor o espaço para as superstições.

Claro que não temos acesso ao todo, ao nexo total do universo. Só podemos compreendê-lo parcialmente, e sempre contaminado de conhecimento inadequado. Mas este esforço precisa ser constante no sentido de torná-lo o mais adequado possível. Estabelecer noções comuns, pontos de apoio. Os falsos sábios se gabam de seu conhecimento e amam os bajuladores, o sábio percebe como seu conhecimento é frágil e busca sempre aperfeiçoar-se. E não há outra forma de fazer isso senão na própria experiência diária, afastando a fortuna e encontrando as relações no campo da necessidade.

Na medida em que algo nos incomoda, devemos testá-la, colocá-la à prova, entender seu funcionamento, tornando-nos assim causa ativa de nós mesmos. As fissuras do comportamento supersticioso começam a aparecer aí, quando procuramos por suas engrenagens e vemos que tudo lá é velho, enferrujado e não funciona mais. Aqui agimos sempre no limite de nossa ignorância, como prudentes experimentadores que não sabem o que vão encontrar. A vida sente a urgência de derrubar ídolos! Quantos repertórios comportamentais não poderiam ser ampliados com a eliminação de alguns poucos comportamentos supersticiosos?

Eis aqui o corte ontológico que Espinosa realiza e que Skinner certamente o acompanharia. O conhecimento não vem de cima e nem é eterno, ele está em constante movimento (porque Deus é causa imanente, não transitiva). Portanto, não há um desvelamento, uma descoberta, mas um constante ato de criação e produção! Conhecer, agir, é estar em Deus, tomar parte da produção de vida, de conceitos, etc., o sábio se confunde com o rio que segue em movimento ininterrupto. Em um primeiro momento este horizonte que se abre pode parecer assustador, caótico, perigoso, mas não devemos nos esquecer que ele brota das fissuras de uma ordem moral do mundo que só gerou decepção e desconfiança.

Nada, certamente, a não ser uma superstição sombria e triste, proíbe que nos alegremos”

– Espinosa, Ética IV,Prop 46, esc.II

Como já dissemos, o comportamento supersticioso nasce de uma aleatoriedade dos estímulos, da contiguidade não necessária entre eles. Ou seja, nasce de nossa impotência; e é apenas pelo nosso esforço que podemos instituir um novo modo de vida! Onde autoconhecimento e autocontrole nascem, surge a possibilidade de experimentação e liberdade! Como filosofar se não for para a vida? Por isso o esforço do behaviorismo e da filosofia de Espinosa para exorcizar seu pensamento do finalismo. Ora, não estamos chegando em nenhum lugar, estamos no meio, sempre no meio, na superfície. E não será um manual de instruções, um vade-mecum, ou um livro religioso que nos dará as respostas!

Os supersticiosos, que, mais do que ensinar as virtudes, aprenderam a censurar os vícios, e que se aplicam a conduzir os homens não segundo a razão, mas a contê-los pelo medo, de maneira que, mais do que amar as virtudes, fujam do mal, não pretendem senão tomar os demais tão infelizes quanto eles próprios. Por isso, não é de admirar que sejam, em geral, importunos e odiosos para os homens”

– Espinosa, Ética, Prop 63, Esc

Neste sentido, somos otimistas, saber de nossas fraquezas já é para nós uma enorme vantagem. Somos tão fortes quanto nosso elo mais fraco, então cabe viver buscando a melhor vida possível, mas reconhecendo que somos em grande parte seres fáceis de enganar e manipular, seres imaginativos. Mesmo assim, nunca vimos, em uma única linha sequer, Skinner e Espinosa maldizendo a natureza humana, muito pelo contrário. E nós estamos com eles, poucos ousaram aplicar-se com tanto afinco para livrar os homens de suas ilusões e lhes possibilitar uma vida mais plena. É impossível julgar na imanência, nela, todas as coisas possuem uma positividade própria. A realidade não é um dever ser, ela é um mar de forças, sopa de estímulos, caldo de afetos. O fim da superstição é apenas o primeiro passo para desprender-se da tristeza e encontrar a autêntica alegria.

A superstição […] parece proclamar que é bom o que traz tristeza e mau o que traz alegria. Entretanto, […] ninguém, a não ser um invejoso, pode se deleitar com a minha impotência e a minha desgraça”

– Espinosa, Ética IV, Apêndice

Revisão: Johny Brito (johny.brito@gmail.com)

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Rafael Trindade

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Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Paula Pucci
Paula Pucci
7 anos atrás

Belíssimo texto! A parte em que fala que, tomados pelo medo, somos como cegos guiados por outros cegos me lembrou Voltaire em seu Ensaio Sobre a Alma, onde ele afirma que nas discussões sobre natureza e propriedades da alma, nos assemelhamos a cegos discutindo com cegos sobre a natureza e propriedades da luz.

Jorge Honzelnan Honzelnan
7 anos atrás

Até posso ter um “mapa”… Mas, a certeza de chegar lá, não depende dele./// A fé pode ser cega para alguns. Para outros é luz; onde o impossível é apenas uma velha palavra em desuso.

Inaudito
Inaudito
3 anos atrás

por força “do” obediência a influências planetárias”