Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Apesar do Eterno Retorno ser sempre exposto como um pensamento inspirado pelas caminhadas de Nietzsche pelas montanhas de Sils Maria, precisamos também trazer, para a completa compreensão do conceito, os aspectos científicos e históricos que influenciaram Nietzsche. Esta questão é importante e o quadro histórico não nega a inspiração nietzschiana.

É neste universo niilista, onde Deus está morto, que Nietzsche pôde pensar novas maneiras pelas quais todas as coisas vêm-a-ser, passam e, como veremos, retornam. A doutrina do Eterno Retorno tem uma face cosmológica com um resultado prático, seletivo e ético. Mas para fazer esta passagem, do argumento para a prática, da teoria para o conceito, é preciso de saída recusar as hipóteses teístas. Para Nietzsche, os que ainda creem na existência de Deus não podem suportar a ideia de que tudo retorna.

Para que haja alguma validade, o Eterno Retorno de todas as coisas exige um pensamento de absoluta imanência, exige uma recusa radical da pretensa finalidade do universo. Só construído sobre um plano de forças em composição e livre disposição é que esse conceito pode ser formulado. Não há hierarquia, não há transcendência, há Vontade de Potência e nada mais.

As discussões, por incrível que pareça, começam girando em torno da invenção da máquina a vapor que sempre tendem a perder calor para o meio externo, não funcionando como um motor ideal. Precisamos lembrar que estamos no período da revolução industrial e a potência dos motores a vapor é sempre longe do que esperam seus inventores (e donos). Nesta época, há inúmeros debates acerca da transformação e dissipação da energia. São estas pesquisas e experimentos que fundam as noções de termodinâmica.

Nietzsche refletiu imensamente sobre o assunto, lendo livro atrás de livro sobre as ciências naturais e preenchendo várias páginas com fragmentos de suas ideias. Nelas estão autores como Thompson, Helmholtz e Clausius, com discussões científicas acerca da entropia, do calor, energia, sua perda e sua possível reconversão cíclica.

No nível filosófico, a discussão pode ser simplificada com duas hipóteses: ou o universo começou em um determinado momento e terá um fim, ou ele sempre existiu e sempre existirá.

A primeira hipótese tem ênfase na segunda lei da termodinâmica: a entropia de um sistema fechado tende ao máximo. Entropia é a energia de transformação, que flui do meio com mais energia para o meio com menos energia. Como um copo de água quente jogado em uma banheira de água fria e que tende a se tornar morna, este universo teria um começo muito quente e se esfriaria até um dia congelar. Dissipação progressiva da energia, o universo aproxima-se pouco a pouco de um estado final, de consumo total de sua energia, uma morte térmica, por assim dizer.

Já a primeira lei da termodinâmica diz que a energia de um sistema fechado permanece a mesma. Ou seja, o cosmos é um universo fechado de energia constante, então ele tende a reaproveitar toda a sua energia (porque ela não tem como fluir para fora do próprio cosmos). Se o tempo é infinito e a energia é finita, então o universo está o tempo todo se recriando e se reciclando.

A primeira lei da termodinâmica é o que permite a Nietzsche se concentrar na questão das forças. Um universo sem começo nem fim pode tratar a hipótese de um Deus como desnecessário (assim como fez Laplace); o Eterno Retorno cosmológico funda a possibilidade de pensar a existência sem uma exterioridade.

Duas hipóteses: início e fim do movimento versus processo cíclico; começo quente e morte térmica do universo versus eterno retorno de todas as coisas. A formulação cosmológica do Eterno Retorno parte, então, de uma proposição bastante simples: “Quem não acredita em um processo circular do todo tem de acreditar no Deus voluntário criador de tudo a partir do nada em um determinado momento“. Nietzsche coloca assim o leitor à prova, como um xeque-mate. Você admite que Deus morreu? Então deve admitir também que vivemos em meio a processos circulares. E as razões são bastante simples

Se Deus não existe, não há finalidade nas forças. Não há também um ser onipotente que as torne infinitas, que seja a força organizadora do caos, que mantenha o motor do universo funcionando em direção a um alvo. O tempo não é uma seta. Assim, podemos dizer que as forças são finitas. E a matéria, constituída por essas forças, também acaba.

Para entender melhor, podemos pensar no corpo como um conjunto de forças finitas que permanecem coesas por um tempo definido, mas logo escapam, perdem a capacidade de manter-se e esvaem-se. O que Nietzsche está dizendo é que isso acontece o tempo todo e com todos os corpos por todos os lugares. Inevitavelmente, tudo vem-a-ser e deixa de ser. Não há uma só força infinita, não há Deus. Tudo flui, tudo se transforma. Não é à toa que Nietzsche se dizia próximo de Heráclito e de outros pré-socráticos.

Melissa McCracken

Mas o filósofo alemão vai além. Esse processo que vai do ser ao não-ser, que leva as forças da coesão para o caos, que a tudo transforma, é circular, pois o tempo é infinito, a eternidade se torna temporal. Como uma moeda atirada infinitas vezes ao ar, o jogo da vida é esse fluxo de forças intermitente que necessariamente retorna. A existência faz desenhos circulares, como um jogo de cartas onde, em algum momento, depois de infinitas vezes embaralhando, a mesma ordem de cartas começaria a se repetir.

Os dois princípios podem ser prontamente contestados, diz Nietzsche. Claro, as forças podem ser infinitas e o tempo pode ser finito. Mas então, caímos novamente no teísmo que havíamos recusado de saída. Se as forças forem infinitas, como dissemos, então Deus existe. Se o tempo for finito, houve uma criação, então Deus existe. Volta-se à concepção de uma eternidade atemporal, acima do tempo. Mas nós matamos Deus! Apostadores que somos, recusamos de saída essas possibilidades. Então, nos vemos obrigados a concordar que, de fato, vivemos um processo circular.

Ademais, se houvesse alguma finalidade, já não a teríamos alcançado dada a infinidade do tempo? Não é possível que haja uma finalidade não alcançada no universo. O caos não tem um sentido, nem aponta uma direção. Procurar ou esperar nos leva diretamente à crença em alguma espécie de ser todo-poderoso. O caos é um mar de forças, um princípio de revolução, um conflito perpétuo de todas as coisas entre si.

O mundo das forças nunca chega a um equilíbrio, nunca tem um estado de repouso, sua força e seu movimento são de igual grandeza para cada tempo. Seja qual for o estado que esse mundo possa alcançar, ele tem de tê-lo alcançado, e não uma vez, mas inúmeras vezes. Assim este instante: ele já esteve aí uma vez e muitas vezes e igualmente retornará, todas as forças repartidas exatamente como agora: e do mesmo modo se passa com o instante que gerou este, e com o que é filho do de agora.

Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez, – um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas”

– Nietzsche, Vontade de Potência, §25

Se a matéria é finita e o tempo infinito, tudo retorna. Esse desequilíbrio próprio do caos, essa diferença de grandeza de nós para com o tempo faz com que tudo retorne. O Eterno Retorno tem uma prova a fortiori, ele é possível para Nietzsche porque o contrário ainda não aconteceu, o vir-a-ser está aí… o tempo continua a fluir.

Nas discussões científicas do tempo de Nietzsche, a hipótese de um retorno cíclico é combatida ferozmente, simplesmente porque é ilógico e sem sentido. Todos veem um retorno contínuo como algo ruim porque, com a repetição do mesmo, não se ganha nada. É aterrorizante esta hipótese, onde está Deus? Onde está tudo que justifica esta realidade? Aliás, para eles, as duas possibilidades são igualmente assustadoras: a primeira porque, caso a energia possa ser reconvertida, o mundo retornaria eternamente; a segunda porque, caso a energia não possa ser reconvertida, o mundo acabaria numa eternidade fria, congelada. A eternidade temporal é o caminho para o niilismo.

Por isso não é fácil suportar o peso do Eterno Retorno de todas as coisas, diz Nietzsche. Viver cada dia como se fosse o último é mais fácil do que viver cada dia como se fosse o primeiro. O Eterno Retorno apela a uma urgência ética! A hipótese cosmológica é a mais plausível para pensar uma nova concepção de mundo, ela radicaliza os processos niilistas que nos arrastam ao fundo do abismo. Por isso, Nietzsche pede que, além de afirmar a continuidade do vir-a-ser, afirmemos também a inocência do vir-a-ser. Não há meta, não há finalidade, não há julgamento, não há nada fora do todo que o possa julgar!

Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa, – pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o maior sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse, quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum meio. Isso vale a realidade”

– Nietzsche, Vontade de Potência, §27

O Eterno Retorno começa com a hipótese cosmológica, com a fundação de uma imanência, mas é somente com o Eterno Retorno do Mesmo, com seu viés ético, que se poderá enfim experimentar a imanência! É o Eterno Retorno de todas as coisas que abre o caminho para o pensamento ético: o que queremos que retorne? O que pode e deve retornar? Qual a conduta para querer viver sempre e mais uma vez?

Como um dos principais conceitos criados por Nietzsche, o Eterno Retorno não será afirmado pelo filósofo alemão como uma verdade científica, mas é trazido em suas obras como uma possibilidade que oferece ao pensamento uma experimentação. A hipótese cosmológica é apropriada como possibilidade para experimentos mentais.

O argumento cosmológico do Eterno Retorno teria ainda o discurso da vontade de verdade, este seria seu ponto fraco, ele quer vencer pela razão. Por isso, apesar de interessante, é a formulação de menor intensidade. Até porque muitos dados científicos indicam a enorme improbabilidade de um Retorno de Todas as Coisas. O universo, criado no Big Bang, está se expandindo aceleradamente (devido à energia escura). Ou seja, se o universo não entrou em equilíbrio é apenas porque ainda é muito jovem, está se expandindo e um dia provavelmente esfriará completamente (ver aqui).

O Eterno Retorno possui sua validade Filosófica, não científica, Nietzsche era fiulósofo, não astrofísico, ou seja, este pensamento é importante do ponto de vista dos Valores, ou melhor, do valor dos valores. Não importa se uma ou inúmeras vezes, a imanência começa a fundar suas bases. Esta imanência exige que se afirme. É preciso apostar, não uma, mas inúmeras vezes. Infinitas vezes Sim, se necessário for.

Texto da Série:

Eterno Retorno

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

Mais textos de Rafael Lauro
Subscribe
Notify of
guest
17 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
astrea
astrea
7 anos atrás

Parabéns, gostei muito!
perfeitamente bem escrito, e portanto bem claro.
Se possível você poderia dizer o que quer dizer ‘imanente’, não entendo essa palavra. Muito obrigada, Astrea

batathor
batathor
Reply to  astrea
7 anos atrás

Imanência é o oposto de Transcendência. O imanente é aquilo que possui um valor e um fim em si mesmo.

astrea
astrea
Reply to  batathor
7 anos atrás

Obrigada Bata! : ) me ajudou!

magicshipcel
7 anos atrás

Ótimo texto, fiel ao pensamento, claro e bem escrito! Parabéns!

mlj
mlj
7 anos atrás

Grande artigo, muito obrigado! (como sempre, a qualidade dos vossos textos nunca desilude) Só não consegui compreender o salto entre a ideia de que o tempo é infinito e que tudo acaba (o que faz todo o sentido), para essa ideia se tornar o argumento principal para o eterno retorno ser justificado. Se existem também infinitas possibilidades de existência, mesmo que o tempo seja infinito e que as “coisas” (universo, etc) ao acabarem tenham de se tornar noutras coisas, não vejo porque tenham de se repetir. A meu ver parece-me que simplesmente continuam a formar novas “coisas” num devir eterno… Ler mais >

Marco Duarte
Marco Duarte
Reply to  mlj
7 anos atrás

Eu trocaria “diferenciado” para “adaptado”, talvez isso possa te responder.

Vide Teoria da Evolução.

mlj
mlj
Reply to  Rafael Lauro
7 anos atrás

Maria, conheces o conceito de naturalismo poético? É coisa recente mas com significado bem bonito, talvez uma boa evolução desse naturalismo mais austero que falas 🙂

mlj
mlj
Reply to  mlj
7 anos atrás

Ooops, algo se passou e comentei no sítio errado, esta era suposta ser a resposta a outro comentário!
Rafael obrigado por essa dica do eterno retorno da diferença do Deleuze, vou ler mais 🙂
Tudo de bom para vocês e continuem a produzir estes textos de alta qualidade, até no outro lado do mundo são lidos!

Um abraço desde o camboja,
miguel

AntimidiaBlog
7 anos atrás

Republicou isso em REBLOGADOR.

Maria Isadora Melo
7 anos atrás

Cara, o naturalismo é incrível!
Mas ainda continuo crente de que a ciência e a filosofia naturalista têm um afã à austeridade. Pensando…
Parabéns! O texto é incrível!

mlj
mlj
Reply to  Maria Isadora Melo
7 anos atrás

Maria, conheces o conceito de naturalismo poético? É coisa recente mas com significado bem bonito, talvez uma boa evolução desse naturalismo mais austero que falas 🙂

Maria Isadora Melo
Reply to  mlj
7 anos atrás

Miguel, confesso que já conhecia. No mais, não com o termo “poético” acrescentado ao conceito do movimento literário, naturalismo. (acho que não me dei conta da ligação entre o termo e o que é intrínseco à arte das Belas Letras. O que para mim também seria uma redundância).
*Espero ter compreendido com coerência ao que falaste.
Mas, porque quando abordei o naturalismo, foi pensando na vertente filosófica mesmo.
Enfim… desde já agradeço por ter compartilhado comigo tal conhecimento.

mlj
mlj
Reply to  Maria Isadora Melo
7 anos atrás

Julgo que o termo (ou melhor, este apêndice “poético” ao já bem conhecido “naturalismo”) é algo recente, dum físico teórico chamado Sean Carroll, como uma forma diferente de olhar o naturalismo, que muitas vezes parece ser visto de forma “demasiado científica” ou materialista. No fundo é tudo uma questão de linguagem…

https://www.preposterousuniverse.com/poetic-naturalism/

🙂

Marco Bernardino
6 anos atrás

Obrigado, Rafael, pelo texto. A conexão entre a ideia do Eterno Retorno e o desenvolvimento da Termodinâmica na época foi muito ilustrativo para mim. Parabéns.

Jose H R Rodrigues
Jose H R Rodrigues
4 anos atrás

Muito bom.
Vivendo e aprendendo.

Fernando Larios
Fernando Larios
11 meses atrás

Bang ou não Bang. Como recolocar essa questão?

https://youtu.be/9Klc-PQah_Q