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Leitura por Adriana Vasconcellos,

Todo o amor que houver nessa vida e algum veneno anti-monotonia”

– Cazuza

*Vocês estão prestes a ler um texto em compassos ternários, para ser sussurrado em semibreves a ouvidos delicados, ou declamado em fusas na praça pública a ouvidos delirantes

Se a filosofia significa literalmente amor à sabedoria, convém dizer: os filósofos também amam. Se muito ou pouco e de que forma, isto depende do filósofo, claro… Platão filosofou e amou, Nietzsche e Espinosa também, cada um ao seu modo. Deleuze e Guattari criaram o belíssimo conceito de Ritornelo, e isto nos permite conjugar o amor dentro da gramática da música.

O ritornelo é um prisma, um cristal de espaço tempo. Ele age sobre aquilo que o rodeia, som ou luz, para tirar daí vibrações variadas, decomposições, projeções e transformações. O ritornelo tem igualmente uma função catalítica: não só aumentar a velocidade das trocas e reações naquilo que o rodeia, mas assegurar interações indiretas entre elementos desprovidos de afinidade dita natural, e através disso formar massas organizadas. O ritornelo seria portanto do tipo cristal ou proteína”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 4

1.

– At the Core, Paul Klee

Como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador, calmante, no seio do caos”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 4

O primeiro passo é construir um território em torno de um eixo (para isso, é prudente levar um diapasão). Entramos em relação com aqueles que vibram em frequências parecidas com as nossas. Pouco importa o sexo, a idade ou a classe social. Pode ser em uma festa, em uma sala de aula, na rua, em uma viagem ou até mesmo na internet. O amor em ritornelo consiste em vibrações, ir e vir, pegar os acordes de ouvido, afastar-se e aproximar-se como a sístole e a diástole fazem. É testar sua melodia no tom de outra pessoa. Entrar na harmonia, encontrar medidas: quintas justas, terças maiores, oitavas, pausas e repetições definem o centro tonal, o primeiro grau da cadência.

Este primeiro momento é um deslizar angustiante no caos, um procurar em cada rosto, um perscrutar cada gesto, nos sentimos como um animal à espreita. Dá medo, dá uma vertigem que assusta, há segredos inimagináveis em cada movimento. Estamos em qual digitação? O ouvido é testado a todo momento. Dizemos: “Calma, me dá um lá!“, “Ei, isso são modos gregos?“. Estamos desesperados, perdidos, são muitos compassos até encontrar um parceiro, uma companheira, enquanto isso, sentimos as borboletas no estômago. Encontramos timbres mil, mas sabemos que a afinação é única…

2.

– Revolving House, Paul Klee

Estamos em casa […] um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar o espaço limitado”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 4

Estamos em casa, carregamos nosso amor no bolso. Se nos afastamos, ainda ecoa em nossos passos o ritmo de sua melodia. Estamos no refrão, todos cantam e sabem bem. É preciso coragem para amar, mas é preciso amar para ter esta coragem. Olhamos para fora: o caos. Ainda estamos à espreita, mas voltamos para a cama, embaixo dos cobertores esquecemos a confusão lá fora.

A voz da mãe ainda está em nossos ouvidos, a comida caseira da avó, a risada dos irmãos na sala, o abraço do pai, enfim, estamos na vizinhança. Conhecemos todos, sabemos o próximo acorde, os dedos estão calejados de prazer. Jantamos e dormimos, construímos uma casa. Sorrimos, é neste espaço onde nos nutrimos e crescemos. Estamos no meio do caminho, onde a contradição se torna mais clara. Não é preciso opor razão e emoção, os dois compõem harmonias belíssimas com extensões de décima terceira e nona.

Existe um amor inadequado? Ora, todos os amores são inadequados! O amor não convém quando se acorda com o alarme de manhã, não convém com a pressa no trânsito, não convém com o estudo e o trabalho robotizados e extenuantes. Amor de medo? De apego? De fuga? É pouco! Todo amor necessita de um pouco de sim! Um ato de fé, talvez, mas fé na vida. Parodiando Nietzsche: mesmo amando ao nada, o amor mesmo está salvo. Lembramos de Guimarães Rosa que já dizia: “qualquer amor já é um pouquinho de saúde”.

Mas a melodia tem suas menores harmônicas, de semitom em semitom, nos deparamos com uma nona menor aqui, inesperada, mas certeira. Uma escala alterada ali e vemos que o caos começa a penetrar no seio de um território onde antes reinava a paz. É necessário lucidez: o amor não é uma casa, é um ritornelo que se faz em três tempos. Todas as coisas cantam, todas as coisas têm seu canto, e em cada canto, um novo canto se abre.

3.

Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele. Saímos de casa no fio de uma cançãozinha”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 4

– Cosmic Composition, Paul Klee

Somos nômades, não nobres. Construímos tendas, não castelos, a mobilidade é nossa casa, sabemos devir-nuvem sempre que necessário, o sedentarismo nos assusta. Não construímos castelos na areia, muito pelo contrário, abandonamos todas as fortalezas para vagar em um deserto de intensidades. A vida é singular e o amor é multidão, sinfonia de um corpo sem órgãos.

O amor não é um território! Tolos são aqueles que fizeram do amor um país com fronteiras definidas pronto para ser conquistado (amores platônicos, amores hobbesianos)! Tolos são aqueles que viram um buraco no seio de quem amava (amores freudianos)! Nossa tarefa mais urgente? Desplatonizar amores, sim, com certeza!

O último movimento do amor é seu próprio abrir-se, desfazer-se, consumir-se, ultrapassar-se, como diz Camões, “é um cuidar que se ganha em se perder”. Existe toda uma nova relação com a loucura, com os perigos, afinal, não se pode permanecer em um território por muito tempo, não se pode manter o regime de forças que constitui o ritornelo porque seu próprio movimento é tão poderoso que o conduz para uma reabertura para o caos, ou, como Guattari o chamou: caosmos.

Talvez o verdadeiro amor seja aquele feito pra acabar, mas acabar porque diz sim! Talvez o verdadeiro amor seja aquele feito para nos jogar mais longe, pra nos fazer outro, uma catapulta de afetos! Ele muda, se transforma, se abre, se cria e recria. Nós nos abrimos no processo, nos deixamos levar, por confiança, talvez por atrevimento, alguns por familiaridade, outros por intuição.

Não podemos dizer com certeza, cada caso é um caso, mas o importante é dizer sim, mergulhar fundo e alcançar outras superfícies, uma nova suavidade. É preciso aceitar o eterno retorno do amor, que sempre retorna (para aqueles que dizem sim), mas sempre retorna diferente (veja aqui). É possível amar várias vezes a mesma pessoa, mas cada dia de um jeito diferente, quando menos se espera, nós mudamos e tudo ao nosso redor também.

É preciso desterritorializar amores, ele mesmo pede por isso, ele mesmo leva a isso. Este é seu último movimento, seu grand finale. Pode-se redescobrir o mesmo amor, de um jeito diferente, na mesma pessoa ou redescobrir o mesmo amor em outra pessoa. A melodia pode durar semanas ou anos, mas sempre há modulação: começa em Dó, mas pode terminar em Lá sustenido menor! Há tantos acordes de passagem que, mesmo na repetição, toda melodia se diferencia. O importante é aprender a amar em tom maior, sem se perder nos modos frígios, ou frígidos. É necessário encontrar uma cadência luminosa que nos prepare para novos horizontes!

O mergulho transforma-se em um súbito retorno à superfície. A força centrípeta transforma-se em força centrífuga: o amor que nos segurava em torno de um eixo, que nos mantinha estáveis é agora o mesmo que nos joga para longe, na existência! Somos surpreendidos como Alice, de Lewis Carroll, ao entrar em uma caverna e encontrar um mundo novo que se abre!

Fazer do amor uma música, uma canção. Reinterpretar o amor em novos arranjos, outros instrumentos, outros tons. Saber encontrá-lo no assobio ou na orquestra. Perder-se com improvisos e rimas espontâneas. Rir e chorar. Encontrar um ritornelo no amor, que não seja eterno, mas, como dizia o poetinha, infinito enquanto durar

Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que esquece a si próprio e todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas se tornam seu declínio”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

Texto da Série:

AM@R

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Caio Ferreira
Caio Ferreira
9 anos atrás

Isto já é rotineiro. Sua poesia e filosofia são deslumbrantes. Antes mesmo eu já era “apaixonado” (não vejo palavra melhor) pela filosofia de Nietzsche. Hoje, sempre que preciso renovar minhas energias, reobservar o mundo, relembrar o eterno retorno, venho aqui, onde encontro não respostas, mas perguntas, que me levam a meditar sobre mim e a reencontrar o mar de forças que sou!
Eu não tenho verdadeiras palavras para lhe agradecer, só lhe desejo um bela melodia para seu dia.
Obrigado!

Paulo Cesar
Paulo Cesar
9 anos atrás

seus textos são de uma intensidade que não cabem palavras, me sinto afetado!

Alessandra Leal
8 anos atrás

Nossa! muito profunda essa reflexão.Texto maravilhoso!! Saboreei cada palavra, cada tom, cada melodia.
Os amores serão sempre amáveis, que desterritorializemos o amor a cada dia, a cada novo amor, amar!!

nataly
nataly
8 anos atrás

Rafael vc é foda! sempre fazendo me perder e me achar em suas tessituras…

Diana Câmara
Diana Câmara
8 anos atrás

<3 <3

Milena Klinke
Milena Klinke
7 anos atrás

Caramba! Só me cabe o caramba na fala e o gosto levemente salgado na boca!

Áudio texto tranvê a alma! Mandaram bem!!!!!

Gilda Lúcia Figueira Balbino
Gilda Lúcia Figueira Balbino
7 anos atrás

Intenso

Sheila
Sheila
6 anos atrás

Que maravilha esse texto…imaginei o tempo todo “a roda que gira por si própria…”; para mim, pessoalmente, foi difícil chegar à altura dessa desterritorialização, tão necessária para vivenciar a Pulsão de Vida e devida à si mesmo…dura e dolorosa a caminhada entre o Camelo e a Criança…
Parabéns! Excelente!

Adelson Matias Souza
Adelson Matias Souza
9 meses atrás

Texto originalíssimo, urdido, corajoso, balsâmico e vertiginoso. Tudo em um! Parabéns pelo texto incrível!, por ser vetor inspirador do bem-pensar!