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Stirner diria, sem medo de errar, que a sociedade é como uma prisão. Uma cela enorme cuja chave foi jogada fora. A família são os carcereiros, o Estado são os muros altos, as grades de ferro são as ideias que nos separam de nossa liberdade. Podemos dizer que Stirner inclusive antecede as ideias de Foucault: a sociedade é moldada na forma de uma prisão. E a saída que o filósofo alemão encontra é apenas uma: a associação.

Poderíamos pensar que ao falar do Único como um egoísta Stirner abdica de qualquer possibilidade de associação, mas isso é um grande equívoco. Encontramos na obra stineriana os mais altos elogios para a associação, como a única alternativa em face do Estado que quer tudo para si e tem o monopólio da violência; em face dos burgueses, que acumulam cada vez mais, explorando nosso trabalho; dos comunistas autoritários, que vendem a ideia de liberdade e nos enganam com suas mentiras.

A situação original do homem não é a do isolamento ou da solidão, mas a da sociabilidade”

– Max Stirner, O Único e a sua Propriedade, p. 395

– Ivo Stoyanov

Em toda parte, encontramos muito mais associações do que competição, para onde quer que olhemos, veremos as mais variadas formas de alianças com um único fim, tornar-se mais forte. Claro que a associação envolve aceitar algumas limitações, mas estes empecilhos e dificuldades não diminuem a utilidade da relação, ela faz parte de um conjunto de liberdades maiores. A associação, dirá Stirner, é uma forma de aumentar a minha liberdade! Ela é uma maneira de multiplicar a liberdade de cada um que dela participa, a possibilidade única de aumentar a de um e do outro ao mesmo tempo. Muito diferente da expropriação e da exploração.

Nossas limitações, mesmo sendo Únicos, é enorme, claro; sabemos que não somos todos poderosos, não somos ilimitados, onipresentes, onipotentes e oniscientes. Somos, em nossa singularidade, apenas uma parte do mundo, uma parte finita. Levando isso em conta, nascem as mais diversas constatações: não podemos voar, porque não temos asas, mas podemos nos associar e construir um avião; não podemos respirar embaixo d’água, mas podemos construir um submarino se nos apropriarmos do conhecimento e dos materiais necessários para isso; não podemos várias coisas individualmente, mas podemos sempre nos unirmos para aumentar nosso controle sobre o mundo.

Para Stirner, o mundo precisa se organizar na forma de uma miríade de associações, tomando para si o que julgarem necessário. Simples assim, da forma mais horizontal possível, de um modo que nenhuma ideia se sobreponha à utilidade e implicação direta da associação. E dela veremos nascer os mais variados movimentos. O sindicalismo é a união de operários buscando melhores remunerações e condições de trabalho; o movimento homossexual é a união de pessoas lutando por direitos civis; um coletivo é a união de pessoas que acreditam em uma mesma causa.

Esta é a ferramenta que o egoísta se utiliza para aumentar sua força. O Egoísta? Claro! Porque se somos mais fortes unidos, então se unir é bom também para o egoísta. É como uma arma, uma estratégia, uma tática que o egoísta se utiliza para aumentar sua propriedade sobre o mundo. É apenas na associação que somos valorizados em nossa própria diferença, como seres únicos. E é exatamente nesta unicidade que não precisamos de pactos ou contratos ou limitações. Na associação os dois crescem e ela dura por quanto tempo tiver que durar.

Aquela sociedade que o comunismo pretende instituir é a que está mais próxima desta acepção da união ou associação”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 399

Apenas na horizontalidade que esta associação pode se dar. Na troca, na relação, sem mediações. Uma união de egoístas, um agrupamento de singularidades, uma multidão, uma pluralidade de Únicos. Naquilo que temos em comum, não no sentido de universal ou de intersecção. Comum no sentido do campo onde a relação é possível, onde há afetos. Afinal, já dissemos com Espinosa, “Nada é mais útil ao homem do que outro homem” (veja aqui). Da associação nasce a núpcias de dois reinos, como disse Deleuze (veja aqui). Um não deve nada ao outra além do que dá de si. Na associação egoísta, não somos iguais, somos diferentes, há uma diferença de grau, de potência, de energia, por isso mesmo há movimento. Há sempre um conjunto de forças reunidas, elas procuram se afirmar.

A associação, porém, é criação minha, criatura minha, não sagrada nem força espiritual acima do meu espírito, muito menos qualquer associação de qualquer tipo”

– Max Stirner, O Único e a sua Propriedade, p. 398

Ou seja, estamos falando de toda uma nova forma de liberdade, uma liberdade que nunca conhecemos! A associação não é a liberdade prometida pela sociedade, a liberdade onde uns se limitam aos outros, uns se afirmam sobre os outros; e também não estamos falando da liberdade do Estado, prometida desde que se siga todas as regras, se comporte, se faça o que eles mandarem. Se o Estado quer destruir o egoísta e a sociedade tem medo do Único, então é apenas na associação onde a singularidade poderá prevalecer. Nela não somos uma boa alma, um homem, o que quer que seja, somos apenas nós mesmos!

A sociedade existe porque existe minha resignação, minha negação de mim, minha falta de coragem, chamada… humildade. Minha humildade é a sua coragem, minha sujeição sua dominação”

– Max Stirner, O Único e a sua Propriedade, p. 397

Nessa luta, invariavelmente doparemos uma hora ou outra com o Estado. Ele dirá que estamos errados, dirá que precisamos lutar pelo “progresso“, pelo “país“, pela “democracia” ou até mesmo por “nossos filhos“. Claro, aqueles que estão no poder pensam que seu poder é sagrado, que está acima de todos, e que ele é a condição de felicidade e liberdade geral. Toda associação será vista como criminosa pelo Estado, a não ser que siga à risca cada determinação sua! Cada coletivo, cada sindicato, cada reunião, cada agrupamento será visto como uma ameaça!

Dentro do Estado somos submissos, estamos como em uma prisão; já a associação é criação nossa! Há aí uma diferença significativa! O Estado odeia a singularidade e o que não pode controlar, qualquer coisa que o coloque em risco é imediatamente varrido da face da Terra. Já nós, não pediremos que ninguém se sacrifiquem por nós, apenas que façam o que achar possível e necessário dentro de suas capacidades.

Para uma associação, tu contribuis com todo teu poder, tua riqueza, e assim te fazes valer, mas na sociedade és usado com tua força de trabalho; na primeira vives de forma egoísta, na segunda, humanamente, isto é religiosamente […] À sociedade, tu deves o que tens, tens obrigações para com ela, estás possuído por teus ‘deveres sociais’; da associação, serves-te como te convém e podes abandoná-la ‘sem obrigações nem fidelidade’ quando não puderes retirar dela mais nenhum proveito”

– Max Stirner, O Único e a Sua Propriedade, p. 404

Não há conciliação entre o egoísta e o Estado, um trabalha na imanência, nas relações puras, onde as trocas e os afetos são possíveis, o outro quer normalizar e assujeitar as diferenças, quer tudo homogêneo e regularizado. O Estado pede nossa fidelidade, quando não a servidão; já o egoísta pede apenas que a associação se dê levando em conta a singularidade de cada um, em seu egoísmo.

É por isso que o estado e eu somos inimigos. Eu, o egoísta, não me empenho particularmente nessa ‘sociedade dos homens’ e em seu bem-estar, não me sacrifico por ela, limito-me a servir-me dela; mas para poder me servir plenamente dela, transformo-a em minha propriedade e minha criatura, ou seja, destruo-a e construo em seu lugar o clube dos egoístas”

– Max Stirner, O Único e a sua Propriedade, p. 231

O egoísta lutará contra todas estas abstrações. Nem Deus nem mestre, gritará o Único a plenos pulmões. Com isso caímos em um terreno delicado, mas que merece ser discutido. Toda associação de egoístas será construída por singularidades. Então, se de um lado dizem “toda a vida é importante“, do outro as mulheres dirão, “a vida da mulher é importante“. Quem está certo e quem está errado? Os dois estão certos, dirá Stirner. Não existe “ser humano” tanto quanto não existem “mulheres“, são apenas palavras que tornam homogêneo cada umas das singularidades. Mas, em sua luta por “direitos”, que nada mais é que uma busca camuflada por mais poder (direitos são propriedades adquiridas pela força), as mulheres podem muito bem se associar para se tornarem mais forte em sua luta. Ora, por que não? Se cada uma delas, em sua unicidade achar que isso convém, que é interessante, então elas devem fazê-lo!

A sociedade é mais do que tu, está acima de ti; a associação é apenas um instrumento teu, ou a espada com a qual tu aperfeiçoas e aumenta a tua força natural”

– Max Stirner, O Único e Sua Propriedade, p. 404

E se disserem: “A vida negra é importante“, Stirner não se oporá, mas o filósofo entende que cada um que se considera negro se associa com outro que também se considera negro, apenas porque cada um considera sua própria vida importante. Toda causa é Única, mas nesta associação elas se tornam mais seguras e mais fortes. “A vida é importante” se torna “A vida negra é importante” e assim caminha até chegar no Único, que diz “A minha vida é importante, minha causa é o que importa“. Sem problemas, cada um se associará da forma que achar mais conveniente.

Stirner não pode ir além disso, porque não há mais nada a dizer, há apenas uma conjunto de egoístas que se juntam em uma associação enquanto isso lhes convém. Não há um sujeito, há apenas vários Únicos, vários em vários lugares. O anarquismo de Stirner é sem limites, não pode haver mais nenhum Deus, nenhuma abstração acima de nós. Não nos vemos mais como seres humanos, cada um é um Eu-singular, procurando afirmar a si mesmo o máximo possível. Não nos juntamos pelo bem da sociedade, pela graça divina, por ideais. Nos juntamos apenas por nós mesmos, para satisfazer nossas vontades, alcançarmos nossos objetivos. E é nessas associações que nascem as sutilezas que apenas relações horizontais são capazes de gerar.

A associação voluntária sob suas diferentes formas: camaradagem, cooperação, uniões contratuais, livres acordos de todos os tipos, nunca encontrou inimigos entre os stirnerianos. Apenas ao se associarem, ao se unirem, eles entendem conservar orgulhosamente sua individualidade”

– Emile Armand, Max Stirner e o anarquismo individualista

A associação é um processo raro onde todas as partes se beneficiam, uma relação mútua onde o contrato é apenas a relação de potência que floresce no ato em si. Nada nos mantém presos neste relação, a não ser o própria fato da relação ser benéfica. Sem teleologias, sem mandamentos divinos, o anarquismo stineriano pode florescer. O que sustenta este conceito é o egoísmo consciente de cada parte envolvida. Na associação, isto já está claro, fazemos mais do que se estivéssemos isolados, nossa potência aumenta, nossa poder sobre o mundo se torna maior. Por isso a associação é uma forma de propriedade e com este conjunto de relações o mundo se torna ainda mais nossa propriedade. Enfim, associação e egoísmo não se negam, pelo contrário, se afirmam. Neste sentido, é melhor confiar nos egoístas úteis do que na caridade dos homens bondosos.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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4 Comentários
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AntimidiaBlog
6 anos atrás

Republicou isso em REBLOGADOR.

Entropia Laranja
Entropia Laranja
6 anos atrás

Belo texto

mas parece que o niilismo foi drenado.

parece que existe uma ponta de otimismo, algo que o autor conseguiu interpretar ao ler Stirner.