Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Da escola de guerra da vida. — O que não me mata me fortalece”

– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Máximas e Flechas, §8

A tradução literal desta máxima japonesa pode ser: “A espada (ken) e o espírito (zen) são um só (Ichi Nyo)”. Mas como toda sabedoria das artes marciais, a tradução literal da frase não dá conta de toda a profundidade contida no pensamento. Outra traduções possíveis seriam: “o punho e o espírito são um só”, ou então “A espada e a pena não a mesma coisa”. Gostamos desta ultima variação, por motivos óbvios…

Se os samurais se utilizavam deste pensamento para dar conta de que o espírito, a própria vida, estava em sua espada, que uma vez desembainhada deveria ser utilizada com sabedoria, a mesma máxima também pode ser usada hoje como arma conceitual para nossas vidas. Somos samurais? Depende… nossas armas são usadas em nossa vida ou ficam guardadas enferrujando na bainha de mielina de nossos cérebros? Não andamos com armas brancas ou de fogo junto de nosso corpo, mas e nossas palavras? E nossas atitudes? Não são elas também como que nossas armas perante a existência?

Para um artista marcial, treinar é aperfeiçoar o espírito! Cada movimento carrega tudo de si. Cada golpe é o último, o melhor, o mais esperado. Como tornar-se um bom karateca sem praticar katas e kihons? Como tornar-se um bom judoca sem praticar movimentos de queda continuamente e imobilização? Mas ao mesmo tempo, como tornar-se um bom aikidoca sem entender a harmonia contida em cada um dos movimentos? Sem compreender que o corpo incorpora a teoria e a teoria é prática as artes marciais perdem todo o sentido.

Ken Zen Ichi Nyo significa que nossa própria existência é uma resistência, nossas atitudes são como armas que utilizamos diariamente para conquistar aquilo que acreditamos. A espada e o espírito caminham juntos porque o punho e a razão são a mesma coisa. A pena é uma arma tanto quanto uma espada carrega uma ideia. Nossa vida é manifestação de um modo de vida, uma ética.

Espinosa poderia muito bem ter praticado Kendô: a mente e o corpo são um só? Teoria e prática são a mesma coisa? Ken Zen Ichi Nyo! Sabedoria marcial na filosofia espinosista? Claro, não foi ele um dos grandes guerreiro de seu tempo? Suas palavras não feriram e cortaram todos os poderosos? O filósofo holandês enfrentou com coragem a superstição de um tempo que, juntamente com Descartes, acreditava que a mente precisava dominar o corpo para não ser dominado por ela. Ora, mas com isso seria possível se a pena e a espada caminham juntos? Diria o filósofo que muito satisfatoriamente vestiria um kimono e pisaria no tatame. Se mente e corpo são um só, podemos dizer que Espinosa lutou bravamente contra corpos impotentes, que se imaginavam puros e escolhidos por Deus.

Uma filosofia da imanência está preocupada apenas com a capacidade de afetar e ser afetado, um não existe sem o outro. Se a pena pode cortar então a espada pode ensinar e cada movimentos que executamos precisa modificar a alma também! E se a alma não estiver no dojo durante treino, então de nada adianta nosso corpo lá executando socos e chutes no ar. Se existimos, então seremos chamados para a luta, se o corpo está fraco, a alma fracassará. Uma mente forte se refletirá em um corpo sadio e os dois precisam estar ativos para superar os desafios. Isso todos os praticantes de qualquer arte marcial entendem profundamente. Um praticante de Aikido, Karatê, Judô, Kung-fu, Taekwon-do, Jiu-Jistu treinam simultaneamente corpo e espírito, teoria e prática, conhecimento e ação. E suas maiores vitórias são sempre sobre si mesmos, sua auto-superação.

Fora com pensadores em suas torres de marfim! Abaixo os bradadores de “na prática a teoria é outra”! Mas fora também com atitudes impensadas e impulsivas! Teoria e prática não são coisas separadas, não são mundos opostos ou incompatíveis. Quem foram os primeiros a desplatonizar o mundo senão os samurais? Nosso objetivo filosófico é exatamente o mesmo, teoria e prática são a mesma coisa. Se em algum momento um parece prevalecer, é apenas uma ilusão, porque os dois estão inextrincavelmente juntos. Uma vida é a manifestação de um modo de vida, que carrega consigo valores, crenças, ideias, verdades, da mesma maneira que um karateca carrega sua espada nos punhos e sua teoria no corpo.

Uma vida se afirma naquilo que pode se afirmar, naquilo que sua potência permite. Esta força, esta potência é uma seleção de um modo de vida, uma maneira de ser e de estar. Podemos concluir que o punho e a espada são um só ao vermos como os movimentos marciais são belos quando bem executados. Toda estética possui um aspecto ético, em vez de moral. E toda guerra é um processo dinâmico de crescimento e afirmação de si. A pena e a espada dão conta de uma ética-estética porque não fazem a falsa separação entre mente e corpo, são virtude pura. O músico carrega seu instrumento; o guerreiro, sua espada; o filósofo, sua pena; o pintor, seu pincel, e todos estão no mesmo nível…

A Espada e o Espírito são um só significa que a realidade é sagrada. Eliminamos qualquer justificação externa: o que vale para o guerreiro é a batalha, independente da vitória ou da derrota! O samurai, tanto quanto o filósofo, se faz na luta, aqui e agora. O que mostra também que nunca se sai do dojo, nunca se sai do campo de batalha, nunca se sai da vida, nunca se sai da teoria. Espada e espírito são a mesma coisa, estamos sempre em guerra. A revolta é um sim e um não, mas ela não permite síntese, nem resolução.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
3 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
AntimidiaBlog
6 anos atrás

Republicou isso em REBLOGADOR.

Ormando (Zion)
Ormando (Zion)
6 anos atrás

Lembrou-me Walter Benjamin falando de Charles Baudelaire e o poeta fazendo esgrima com o papel… Escrever é devir verso, verbo traço consciência!

Fernando Sedano
Fernando Sedano
4 anos atrás

Muito legal tua reflexão amigo!
Apenas para colaborar, o shodo que tens acima refere-se apenas a punho e não a espada.
São palavras homófonas, mas pelo Kanji podemos diferenciar.
O conceito, bastante utilizado por Kishikawa Sensei, “Ken Zen Ichinyo” em kanji escreve-se assim:
刀禅一如.
E o conceito Ken Zen Ichinyo utilizado pelo Shorinji Kenpo, que refere-se ao “punho” grafamos desta forma:
拳禅一如; tal qual é exposto no shodo acima!
Espero ter contribuído e desejo sucessos em teu trabalho pessoal!
Gasshô
Fernando Sedano
(Monge Ryûshin, da escola Soto Zen)