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Como muitos se propõe a falar de filosofia e dar-lhe uma definição, então precisamos começar limpando o terreno das más definições, das definições fracas, mancas, em uma palavra: inconsistentes. Comecemos então com a definição negativa, afinal, o que a filosofia não é?

Vemos ao menos o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 12

  • Contemplação: a filosofia não é contemplação porque ela não é desinteressada… Aos que respondem que a filosofia não serve para nada, Deleuze retribui com uma gargalhada galhofeira. Mas no fundo é triste que alguns pensem assim. Se a Filosofia é contemplação sem interesse algum, então sua utilidade é nula! De que adianta contemplar o mundo das ideias e tropeçar em uma pedra aqui? O filósofo não possui compromisso nenhum com o Universal, não está nem preocupado com isso, porque seu ato de filosofar é pura e simplesmente criar conceitos. Conceitos estes absolutamente singulares, quase particulares, que preencherão o plano de imanência.
  • Comunicação: a filosofia também não possui compromisso algum com o consenso. O meio termo é uma aberração para ele! Em sua função, o filósofo não espera que os conceitos sejam aceitos nem compreendidos por todos. Pelo contrário, quantas vezes a filosofia não cria o desconforto, a angústia? Os conceitos possuem fundamento e não se rendem à opinião geral. A voz do povo é a voz de Deus? Pois bem, diz o filósofo, Deus está morto! Não podemos esperar do filósofo uma comunicação que esclareça e crie consenso, ele não está preocupado com isso. Devemos fugir das discussões e comentários de internet, a filosofia tem mais o que fazer… Cada um tem a filosofia que merece, alguns, inclusive, não possuem nenhuma.
  • Reflexão: O horror da filosofia às discussões nos leva à última proposição negativa. Quem disse que é necessário a filosofia para refletir? Ora, de modo algum! Podemos refletir com qualquer outra coisa, com as árvores, com uma música, com um poema, com números. O matemático não espera o filósofo para refletir sobre seus problemas. O biólogo não espera o filósofo para refletir sobre os animais. O poeta não espera o filósofo! Ninguém espera a filosofia para pensar (talvez por isso o filósofo possa, mais do que ninguém, habitar a solidão). O pensamento habita a filosofia, mas não é exclusivo de seu campo.

A filosofia não possui compromisso nenhum com o Universal, com o consenso ou com a doxa (opinião). Seus caminhos são outros, ela opera por singularidades. Para Deleuze e Guattari, o conceito será o centro da filosofia, sua razão de ser; podemos resumir tudo em uma fórmula simples: Filosofar = criar conceitos. Pode parecer estranho em um primeiro momento, talvez prático demais. Quer dizer então que os conceitos não estão escondidos por trás dos fenômenos, ou brilhando no céu? Sim, é exatamente isso, filosofar é a prática de criar, inventar, construir, talhar e dar consistência aos conceitos. E podemos ir além, não há altar para os conceitos, eles precisam ser arrancados do ato do pensamento.

Todo conceito remete a um problema,  a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 25

– Simmon Kenny

Mas por que inventaríamos conceitos em um primeiro momento? Qual a razão de inventar conceitos e por que eles seriam necessários? É preciso inventar conceitos por uma razão simples, porque eles surgem para resolver problemas. Da mesma maneira que se inventam ferramentas para resolver problemas, os conceitos são utensílios existenciais, inventados para superar e solucionar problemas que o ato de viver encontra em seu caminho.

Todo conceito surge para resolver um problema. Todo e qualquer conceito surge porque de uma maneira ou de outra havia uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho havia uma pedra. A pedra é o acontecimento, e o conceito é a vida que procura dar conta de si mesma, superando os obstáculos através do pensamento. Sendo assim, o filósofo cria conceitos para uma realidade determinada: esta vida, esta existência, com estes problemas e estas questões a se resolver. O ato filosófico continuamente reconceitualiza a existência, encarando os problemas e encontrando novas formas e existir.

Ainda assim, conceitos não nascem do nada, claro, e também não são feitos de qualquer maneira, eles também possuem histórias. Ainda assim, não é qualquer coisa que podemos chamar de conceitos, eles nascem sendo atualizados por conceitos antigos, ou por adição e subtração de componentes que os constituem.

Por isso a história da filosofia é diferente do ato de filosofar. O historiador da filosofia, e isso vale para os professores de filosofia, fala dos conceitos em seus devires, suas transformações e criações. Os filósofos não filosofam por um ato de espontaneidade, eles mergulham no caos, mas armados de conceitos antigos, retirados de filósofos anteriores. Mas criar conceitos é sempre romper com a história, é ser extemporâneo. Os problemas não são históricos, são imanentes. O filósofo olha para o presente, pedindo por um futuro, criando mundos; já o historiador olha para o passado, tentando compreender o presente.

Por isso não podemos dizer que os conceitos se misturam com a história. O que os eles realmente possuem é devir. Eles se movem em zigue-zague pela linha do tempo, ora entrando e hora saindo, ora fluindo e ora o enfrentado, se tornando imperceptível com ele ou abrindo, arrancando, novos mundos de dentro dele. Um conceito surfa na história, ora entrando no tubo, ora saindo com um esguicho d’água atrás de si.

Não há  conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem portanto uma cifra. É uma multiplicidade”

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 23

Chegamos finalmente ao conceito e precisamos dizer antes de mais nada: Não há conceito simples! Mas isso não significa que exista uma hierarquia entre eles. Todo conceito é absoluto em si, mas opera uma condensação, pois move-se articulando componentes heterogêneos. Isso é muito importante! O conceito é irregular e múltiplo, é um acúmulo de pensamento, uma composição díspar, um equilíbrio fino de uma multiplicidade, um nódulo de divergências consistentes; se observarmos com cuidado, podemos ver suas sinuosidades e inconstâncias, ele está aí, vivo, operando, afirmando-se. Tudo bem, não precisamos esperar que as ideias sejam como peças de um quebra cabeça, onde cada uma se encaixe perfeitamente à outra; já falamos, mas não custa repetir, conceitos são ferramentas. Não precisam ser bonitinhos, apenas precisam funcionar!

O conceito define-se pela inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade infinita”

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 29

– Simmon Kenny, Now and Forever

Há uma constante articulação, cortes, ligamentos, remendos, gambiarras. Todo conceito insiste. Ele é ao mesmo tempo absoluto, por permanecer em si, e relativo pois entra em relação com outros conceitos do mesmo plano de imanência através de cortes e superposições. Neste ato, ele se distribui e efetua encontros. Também podemos dizer que ele é finito em sua definição, pois seu movimento possui um contorno definido (mesmo que irregular), caso contrário cairia no caos e no indiferenciado; mas se move na velocidade do infinito, pois cavalga as forças do acontecimento, nunca ficando para trás.

Apesar do conceitos ser fragmentário, até mesmo heterogêneo, poderíamos dizer, ele se constitui pela relação consistente entre seus componentes. Um corpo com determinadas conexão harmônica, ressoando, comunicando suas velocidades e repousos. Como um acorde no meio da música, os componentes de um conceitos se constituem por suas zonas de vizinhança, pelas pontes que constrói com outros conceitos, exoconsistência.

Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outros. É por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder”

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 31

E por último, todo conceito possui devir. Sim, ele embarca na existência, quer enfrentá-la, tomar partidos, rumos, coexistir com ela, fluir na mesma direção. Os conceitos não são quadros imóveis da existência, não habitam o mundo das ideias, eles são aquilo que adquire consistência dentro de um acontecimento, e cabe ao filósofo fazer com que o conceito não perca sua parcela de movimento infinito embebido de realidade. A filosofia não quer parar o tempo, não quer encontrar uma imagem móvel da eternidade, muito pelo contrário, a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistência.

O conceito é a prancha de surf com a qual descemos a onda do devir! O filósofo é um surfista. O conceito é o skate com o realizamos manobras no parque. O filósofo é um skatista. O conceito é a picareta com a qual escavamos cavernas, descemos mais fundo, abrimos galerias subterrâneas. O filósofo é um geólogo. O conceito é o foguete com qual o astronauta encaramos o infinito. O filósofo é um astronauta.

O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado de coisas no qual ele se encarna”

– Deleuze & Guattari, O que é  a Filosofia?, p. 42

A filosofia recorta o acontecimento do caos e lhe dá consistência através dos conceitos, eles são instrumentos de trabalho, para continuarmos navegando o fluxo de forças sem nos desintegrarmos. Ai do filósofo que não criar conceitos, será para sempre um escravo de ideias que não são suas, de vidas que não lhe competem, de realidades que não lhe pertencem. O filósofo cria conceitos para dizer coisas em seu nome!

Cada conceito corta o acontecimento, o recorta a sua maneira. A grandeza de uma filosofia avalia-se pela natureza dos acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam, ou e ela nos torna capazes de depurar em conceitos. Portanto, é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único, exclusivo, dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora. O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence

– Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?, p. 43

Texto da Série:

O que é a Filosofia?

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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AntimidiaBlog
6 anos atrás

Republicou isso em REBLOGADOR.

glen
glen
Reply to  AntimidiaBlog
6 anos atrás

O que aconteeu com os vídeos do abecedário de deleuze que nao estão mais disponiveis?

Anita Regina dos Santos
6 anos atrás

“Ai do filósofo que não criar conceitos, será para sempre um escravo de ideias que não são suas, de vidas que não lhe competem, de realidades que não lhe pertencem. O filósofo cria conceitos para dizer coisas em seu nome!” Fantástica essa síntese. Outro dia mesmo na faculdade, eu falei isso com os colegas, nós acabamos sempre repetindo o que os outros já disseram, temos medo de “dar a cara à tapa” expondo o que pensamos. Adorei o texto!

Marcio
Marcio
6 anos atrás

Excelente texto. !

Branca Majid
6 anos atrás

Elucidativo

jorgesapia
6 anos atrás

Republicou isso em A festa é boa para pensar.

filosofomarcostorres
6 anos atrás

Muito bom o texto. Grande Deleuze!!!

João Emiliano Martins Neto
João Emiliano Martins Neto
2 anos atrás

Discordo de Deleuze e Guatari. Eu vejo o conceito como um filho de algo gestado e concebido como uma visão do filósofo do que é parte do Ser, um ente, que é Deus cujo ente mais nobre que há, depois do anjos, é o homem. Então, o homem gesta e concebe em seu ser pela reflexão, pelo diálogo e argumentação, e pela experiência estupefata do mundo algo que por fim é contemplado como em um altar o altar que é Jesus Cristo que foi o homem mais que vitorioso que por todos os homens venceu e todos mais do que… Ler mais >