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Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” Camus, O Mito de Sísifo, p.17

Toda a metafísica cai de joelhos com a pergunta “devo me matar?”, e assim se instaura o plano de imanência de toda a filosofia de Albert Camus. Ou o pensamento agarra-se à vida para esboçar uma resposta ou atira-se pela janela, salta para fora e aposta em alguma transcendência. Deleuze falando sobre Espinosa, “Príncipe dos filósofos, fez o melhor plano de imanência, aquele ao qual não se corre o risco de cair na transcendência”. Em Camus, podemos dizer, ele traçou o plano de imanência mais radical, aquele que obriga a ficar ou sair de uma vez por todas.

É preciso coragem para acompanhar Camus. Os princípios de uma filosofia de tempos sombrios, tempos de guerra, de cotidianos massacres não poderiam ser outros: “todo conhecimento verdadeiro é impossível” “Só se pode enumerar aparências e apresentar o ambiente”. Os homens têm uma sensibilidade absurda, que os empurra o nada goela abaixo. Assim, pensar é começar a ser atormentado. A razão com pés de barro num chão de lodo. O universo foi repentinamente privado de ilusões: as grandes guerras corroeram os ideais. A única distribuição igualitária foi a de culpa.

O tema do ensaio “O Mito de Sísifo” é exatamente a relação entre o absurdo e o suicídio. É preciso compreender: “há uma lógica que leve até morte?“. Interessante notar que neste livro pensamos a morte individual, o suicídio como resultado de uma vida que desabou. Em “O Homem Revoltado“, livro posterior de Camus, a pergunta é refeita do ponto de vista do assassínio: há uma lógica que justifique o assassinato?

Meio século após Nietzsche, que dizia que “os homens preferem o nada a nada querer, o que mudou? Parece que os homens passaram a preferir a morte ao nada. Na realidade, aqueles que preferiam o nada continuam vivos realizando seus saltos e cambalhotas, mas há toda uma espécie de desabrigados. Homens despertos e sadios que não conseguem senão perceber o absurdo de sua existência. A ausência de sentido envolve-nos a todos como uma grande névoa.

Há três opções: conviver com o absurdo, aceitar a morte ou ter esperança. Ah, claro, pode-se inventar um outro mundo em Deus ou na Revolução, onde tudo se resolve numa unidade perfeita. Mas, deixemos claro, não deixa de ser uma outra maneira de se matar. Sejamos corajosos e audazes, vamos dar a face ao absurdo. “Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer“… Considerar o absurdo é dar de cara com um muro.

Em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos leva. Mas sempre chega a hora em que temos de levá-lo. Vivemos no futuro: ‘amanhã’, ‘mais tarde’, ‘quando você conseguir uma posição’, ‘com o tempo vai entender’. Estas inconsequências são admiráveis, porque afinal trata-se de morrer. Chega o dia em que o homem constata ou diz que tem trinta anos. […] Pertence ao tempo e reconhece seu pior inimigo nesse horror que o invade. O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo. Essa revolta da carne é o absurdo” p.28

Marc Perez

O assombro é o primeiro grau do absurdo. Nos assustamos com o passar do tempo e com a falta de sentido e proporção que isso toma. Mas esse sentimento vai se adensando. E prosseguimos passando para outros graus, onde o absurdo se torna a maneira pela qual experimentamos o mundo. O assombro se torna estranheza: “o mundo é denso, uma pedra é irredutível“. Num instante, o mundo perde sua camada de doce ilusão e volta a ser esse imenso, hostil, acúmulo de milênios. “O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo“. Os cenários foram todos disfarçados pelo hábito. Vemos, de repente, no rosto de quem amamos, o total abandono a que estamos sujeitos, mas não é hora ainda. Estamos nesta corda esticada, neste momento de estranheza e densidade. Isto é o absurdo.

Tudo começa com um fundo de “nada”. Uma resposta atravessada a uma pergunta “Que pensas?”, nada. O absurdo é um ruído que nos persegue. Por um segundo, ele toma conta da percepção, como uma televisão mal sintonizada. E perdemos a capacidade de fingir, tamanha a desumanidade a que somos submetidos. O absurdo é um mal-estar diante de nós mesmos. É uma colisão frontal com a falta de sentido do mundo.

Este lado elementar e definitivo da aventura é o conteúdo do sentimento absurdo. Sob a iluminação mortal desse destino, aparece a inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são justificáveis a priori diante das matemáticas sangrentas que ordenam nossa condição” p.30

O absurdo chega a ser ridículo e óbvio. Ele está nas conversas do dia-a-dia. Ele é um divórcio do homem com o mundo. Ele é a marca incontestável que nos distingue. É um apelo da razão frente a irracionalidade de tudo. O absurdo é o resultado de um mau, porém necessário, encontro com o mundo. É o resultado de uma desmesura. Medida em desmedida: cronos em aion.

Estamos condenados a perceber que não há par da razão no mundo. Fomos mal dispostos. Temos uma razão que busca a unidade. Somos nostálgicos de nossos úteros. Como sentimos falta de nossas pátrias! Entretanto, não há Deus, não há pátria, não há pai, não há verdade. Não há lógica que resista, o absurdo é o sofrimento de uma racionalidade em extinção.

Estranho a mim mesmo e a este mundo, armado somente com um pensamento que se nega quando afirma, que condição é esta em que só posso ter paz deixando de saber e de viver, em que o pensamento da conquista se choca com os muros que desafiam seus assaltos. Querer é suscitar paradoxos. Tudo está arrumado para que nasça uma paz envenenada que a displicência, o sono do coração ou as renúncias mortais proporcionam” p.34

Assumir o absurdo é o único primeiro passo. Suicídio, salto e nostalgia não podem ser opções. A partir desse momento, o absurdo é uma paixão. Precisamos nos reinventar para entender em que medida conseguimos viver com ela. Resta saber se o pensamento pode viver nestes desertos. A razão está bem prostrada sob o grande grito de Zaratustra. O absurdo ruge à menor tentativa de resgate dessa razão anciã. Os ideais puros e inocentes de uma altiva racionalidade não servem mais.

Temos o desejo de felicidade, de uma razão potente. E isso nos permite ir ao limite. Toda uma vida pode nascer como consequência de uma boa batalha com o absurdo. Criar consistência é o maior desafio. Se a razão se dirige a um mundo em silêncio irracional, é preciso que criemos sentido por nós mesmos.

Para um espírito absurdo, a razão é vã e não existe nada além da razão” p.50

A razão serve! Nós somos capazes de nos relacionar melhor com o mundo através dela. O absurdo surge neste hiato entre nós e o mundo, mas isto não significa que a razão é inútil. A questão está no uso. O absurdo é resultado de uma razão lúcida que constata os seus limites. Sabemos os ultrajes que são cometidos quando ultrapassamos estes limites em nome da razão. Iluminamos o mundo sob o custo de o imobilizar.

O absurdo nos esclarece o seguinte ponto: não há amanhã. É preciso viver para isso. É daí que se pode extrair uma ética, uma maneira de viver em acordo com o absurdo. A revolta, a liberdade e a paixão são consequências diretas disso. A única realidade é a presença deste momento e nada mais. Nenhum eterno é possível ao homem que considera verdadeiramente o absurdo. Só se pode viver a esse custo.

Lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo: o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias sem futuro” p.89

Texto da Série:

O Homem Absurdo

Comentário do Autor

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Rodolfo de Barros Soares
Rodolfo de Barros Soares
6 anos atrás

Viva Nietzsche….nada de razão, e sim instintos-dionísio- só quando nos estamos sobrecarregados de instintos e que chamamos a razão-apolo-

Geraldo Lúcio Rodrigues
Geraldo Lúcio Rodrigues
6 anos atrás

Rafael texto muito bom … potente …
Só uma sugestão … após a citação p. 50 … Vc recomeça o texto:”A razão serve! Nós somos capaz de…”
Nós somos capazes de …

FRANCIELLE SILVA
FRANCIELLE SILVA
6 anos atrás

Parabéns Rafael, excelente texto !

iddeia cultura e pequisa
6 anos atrás

Republicou isso em iddeia cultura e pesquisae comentado:
Tupy or not tupy. Thats the question…….

Fauno Guazina
Fauno Guazina
6 anos atrás

Parabéns! incrível e elucidador, criado de possibilidades.

marcopaiva2004
marcopaiva2004
5 anos atrás

Vocês são maravilhosos nessa visão filosófica moderna.
Estudo a filosofia como partícipe do ensino da Matemática com o objetivo de melhorar seu ensino. Sinto muita dificuldade de encontrar textos que me apoiem, estou nessa busca.

Ueslei Camelo Barbosa
Ueslei Camelo Barbosa
4 anos atrás

Texto bem escrito, linguagem culta, erudita, todavia, marcado profundamente com o desespero que nasce no coração de um homem sem ligação com sua essência, com o Divino. Perdoe-me, sem querer parecer raso, mas acredito que para o bem daqueles que estão buscando justificativas para tirar a própria vida, seria prudente retirar este texto da internet. Sei que não concorda, pois certamente eu não teria chegado aqui. Há esperança sim. Não no sistema político, nas instituições, na igreja etc. Há uma luz que pulsa dentro de cada um de nós, que insiste em atravessar as trevas que vivemos nestes tempos sombrios.… Ler mais >

Pablo Luiz
Pablo Luiz
Reply to  Ueslei Camelo Barbosa
1 ano atrás

Ueslei, você tem que conhecer o autor antes de criticá-lo. Camus nunca afirmou que o suicídio era a saída para o absurdo da existência humana, nunca! Para Camus matar-se significaria deixar que o Absurdo vencesse, logo não era uma opção viável. No entanto, e eu não quero decepcioná-lo, essa conversa de Deus, ”centelha divina”, essas questões metafísicas também não eram uma opção para Camus, pois essas explicações não eram plausíveis…

Last edited 1 ano atrás by Pablo Luiz
Klives
Klives
Reply to  Ueslei Camelo Barbosa
7 meses atrás

Interessante sua visão amigo, ou amiga. Mas, como uma pessoa que, em suas palavras, buscava justificativas para tirar a própria vida, acabei por descobrir justificativas para manter minha própria existência.
Entendo que você tenha entendido de uma forma e eu de outra, isso é normal do ser humano. Contudo, creio que entender esses sentimentos que me levaram ao abismo, entendi como não continuar assim.

Naíra
Naíra
3 anos atrás

Aprendo absurdamente com seus textos.

netobomb
netobomb
2 anos atrás

Que texto maravilhoso, parabéns. Esse livro é extremamente necessário para quem ama filosofia, afinal, é preciso imaginar Sísifo feliz.

Fernanda
Fernanda
1 ano atrás

Adorei as linhas que dão razão a sua vida… abraços e parabéns pela forma de expressar sua teia.