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Sabemos como Foucault é um filósofo que se dedica aos discursos. É neles onde melhor encontramos as forças em disputa, o choque dos significantes e o deslocamento dos significados. É através deles também que encontramos a fala como manifestação da verdade. Não apenas a verdade enquanto episteme, preocupada com o conhecimento verdadeiro, mas a aleturgia, como modo de falar que manifesta-se enquanto verdade pelo próprio ato de dizer. O discurso, ele mesmo, como uma força veraz, posto em jogo por um enunciador implicado nas próprias palavras. Todos os modos do dizer-a-verdade são modalidades da implicação do sujeito com a verdade que ele manifesta.

Pensando a vida dos gregos antigos, Foucault coloca a parresía como o modo aletúrgico por excelência. Sua preocupação em seu último curso, Coragem da Verdade, é esta. A fala franca da parresía, arriscada, presente nos cínicos, é o que Foucault, e nós mesmos, mais queremos pensar. Uma maneira de existir que manifesta em si toda a coragem da verdade de que se é capaz. Um modo de falar posto em marcha pelo Cuidado de si e dos outros, que faz da vida uma vida de verdade. Investigar os outros modos pode nos ajudar a definir ainda melhor o que pode o parresiasta.

Primeiramente, veremos o profeta como modo de veridicção. Não vamos fazer uma análise do que cada um deles dizia, mas como eles diziam, como eram reconhecidos enquanto enunciadores de uma verdade. O que nos interessa é menos do campo das palavras do que dos gestos de fala. De uma maneira de viver que se apresenta através da fala e que é percebida por todos como um distintivo. Um jeito de ser que se apresenta em um determinado modo de falar. Não precisamos de exemplos ainda, podemos partir de uma figura genérica de profeta, pois queremos identificar algo de comum, que nos permita conjugar esse tipo de fala.

Lyonel Feininger

Em linhas gerais, o que caracteriza o profeta? Ele é um mediador. Ele dá voz a algo que não pode ser ouvido pelo homem comum. O profeta não fala em próprio nome, sua boca é um intermediário para uma voz de outro lugar. Sua fala não é necessariamente a interpretação de uma escritura, mas a enunciação de uma revelação. Ela invoca sempre os desejos e pensamentos de um ser porvir, de um além que se apresenta, que fala, que mostra algo unicamente ao profeta.

É por esse motivo que o profeta é o modo de veridicção que mais corre o risco da transcendência. É por isso que ao pensar figuras proféticas somos invadidos de exemplos ruins: canastrões e moralistas de toda sorte vêm inevitavelmente à cabeça. Claro, a fala do profeta está necessariamente posta entre mundos. Mas cuidado, não queremos cair tão fácil nesse mal juízo. A intenção não é julgar, mas compreender. Veremos a fala profética pode ser uma potência.

Entre mundos quer dizer também entre o presente e um futuro. O profeta se situa nesse campo. Ele se lança aos saltos do passado ao futuro, do que foi feito ao que se fará, do que foi ao que será. É por isso que profecia está costumeiramente ligada a essa capacidade de prever o futuro. É uma fala digressiva, ela se desliga do presente, mas para retornar a ele com uma mensagem. Para revelar algo, para dar uma missão, para apontar um caminho. Esse deslize temporal faz da profecia uma boa maneira de se ligar ao que não é, ou ainda não é: às utopias, às possibilidades ignoradas, às realidades suprimidas.

Através dessa outra voz que ele enuncia, o profeta esclarece algum sentido oculto nas coisas. Algo que ele possui como visão direta, mas ao qual ele não pode fornecer senão um soslaio, pois a fala profética é sempre misteriosa. Não se diz o ser do porvir claramente. O profeta não mostra o que vê, o que ouve, o que pensa sem recorrer à metáforas, adivinhas e previsões. Sua fala é enigmática, ela precisa ser interpretada. É assim que um oráculo responde aos seus interlocutores: revelando algo obscuro. O homem que vai ao profeta volta com a tarefa de interpretar o que lhe foi dito.

Esquematicamente, vemos cada um dos modos do dizer-a-verdade se apresentando segundo três variáveis: o vínculo, o domínio e o modo de palavra. Ou seja, o profeta possui essas três características:

  • Qual o vínculo entre o profeta e seu interlocutor? A profecia pode ser particular ou pode ser dada a um grupo, mas possui sempre um vínculo de fé. Há uma relação de crença entre o profeta e quem o ouve. É por isso que muitas vezes os profetas tem seguidores, apóstolos, intérpretes…
  • Qual o domínio do profeta? Se ele não está no presente e fala do futuro, seu campo é o destino. A expressão do seu saber está no porvir. Ele fala do apocalipse, do retorno de algo, da salvação…
  • Qual o modo de palavra do profeta? O vocabulário do profeta é o enigma. É o tipo de discurso, é o seu vocabulário próprio. Ele precisa de todas as voltas e elucubrações dos signos para falar aquilo que ainda não se formou, não se mostrou.

Se a nossa intenção declarada é ganhar corpo no modo do parresiasta, é entender melhor como essa maneira de falar existiu, precisamos agora contrastá-la com o profeta sob esses mesmos três pontos de vista:

  • O profeta dá voz a algo que não é ele mesmo. Já o parresiasta, ao contrário, só fala em nome próprio. Não representa ninguém. Assim sendo, o vínculo do paressiasta com os seus interlocutores é o pacto. É um jogo arriscado, onde o interlocutor aceita que o parresiasta lhe diga o que pensa, mas dentro de certos limites. Uma palavra errada e o pacto de desfaz, perde o equilíbrio. A parresía é ousada, mas tem a prudência como balança. Ela quer dizer algo, quer fazer passar algo no momento em que se coloca, por isso não pode deixar que o tiro saia pela culatra.
  • A profecia se debruça no futuro. O domínio do parresiasta simplesmente não pode ser nada a não ser o presente. Não só enquanto tempo histórico, mas enquanto atualidade. Ele se esforça para mostrar algo que ninguém vê na configuração das forças apresentadas ali mesmo, naquela situação em que se fala.
  • O profeta é obscuro, o parresiasta é o mais claro que pode ser. Ele apresenta em ato o que pensa. Aliás, este é seu desafio: como dizer a verdade sem quebrar esse vínculo de escuta? Como falar o que é preciso ser dito sem fechar os ouvidos de quem ouve? O parresiasta não precisa ser interpretado, ele mesmo mostra o que se passa. Ele aposta na própria franqueza como revelação de uma covardia, algo que todo mundo sabe mas ninguém quer ver. A parresía não deixa nada a interpretar, ela deixa algo a fazer.

Muito bem, vemos alguns antagonismos esboçados, mas não é bem o ponto que gostaríamos de desenvolver aqui. Poderíamos ter escolhido um exemplo mau profeta, um sacerdote ascético. Um falso profeta que usa o poder da fala misteriosa para subjugar, para maldizer, para fechar possibilidades, para estabelecer uma moral, para criar superstição, para manobrar o rebanho. Mas nós queremos saber diferenciar melhor e não nos rebaixar num julgamento. Há várias maneiras de ser verdadeiro. A profecia pode ser, tanto quanto os outros modos, uma potência da fala. Por isso, optamos por escolher um bom exemplo de profeta. Um personagem que representa com rara dignidade essa classe. Um profeta imanente, potente, interessante: Zaratustra.

Vós vos perguntastes muitas vezes: ‘Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-lo?. E, tal como eu mesmo, vos destes perguntas como respostas. É ele um prometedor? Ou um cumpridor? Um conquistador? Ou um herdeiro? Um outono? Ou uma relha de arado? Um médico? Ou um convalescido? É ele um poeta? Ou um homem veraz? Um libertador? Ou um domado? Um bom? Ou um mau?’” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da redenção

Claro que Zaratustra tem muito de outros modos. Muito de parresiasta e muito de sábio. Sabemos bem que os modos se relacionam entre si, não estamos fazendo uma categorização. Foucault propõe essa maneira original de interpretar um discurso, uma maneira de olhar como uma bela forma se impõe pela fala. Não para ligá-la a um gênero rígido, uma imagem fixa, mas para enxergar uma potência que se diferencia dentro de certas constantes.

A questão que não podemos perder de vista, é que a profecia tem um valor. Nietzsche colocou na boca de Zaratustra muito do que não teve coragem de dizer, ou, para dizer melhor, inaugurou através de Zaratustra um jeito de ser que ele, Friedrich, ainda não era. “Zaratustra é o profeta do Eterno Retorno“, diz Deleuze. É esse personagem nietzschiano que opera os conceitos a partir de dentro.

Assim Falou Zaratustra tem como subtítulo: “Um livro para todos e para ninguém”. Ou seja, é para quem puder entender! É muito difícil captar todas as imagens evocadas, toda a representação dos personagens, a fala poética e misteriosa do Zaratustra. A filosofia fora dos sistemas e dentro das profecias exige que o leitor seja um bom intérprete, precisa de uma postura ativa, que constrói hipóteses, que traça paralelas com o resto da obra, que pensa de maneira criativa. Em obras deste tipo, não se elucida, não se expõe didaticamente, mas se desvela algo.

No começo do livro, o profeta Zaratustra em sua caverna percebe a exuberância do Sol, em seus excessos de calor, gerando toda a vida. E pensa, preciso ser como sol, derramar meu valor, transbordar minha existência. Assim, diz ao sol:

“Abençoa a taça que quer transbordar, para que a água dela escorra dourada e por toda parte carregue o brilho do teu enlevo!” Prólogo, Assim Falou Zaratustra, Nietzsche

Zaratustra, Nicolas Roerich

Zaratustra desce para anunciar um futuro: o homem é uma passagem, precisamos abandoná-lo. Ele é uma corda esticada entre o animal e o além-do-homem. Seus discursos vão confrontar os últimos homens, os defensores da humanidade. Enquanto profeta, Zaratustra quer apresentar aos homens o que pode ser o futuro. O que ele viu reservado para nós no firmamento. Ele apresenta sua fórmula para a grandeza no homem anunciado, que permanece longe, mas que pede por ser apresentado.

Zaratustra um anunciador: eis um grande profeta, que tem na sua fala uma potência de descobrimento e revelação. Ele é sempre escutado, mas nem sempre entendido. Ele enfrenta seu rebanho; é cruel porque quer o melhor deles, pede que não o sigam, que criem outras maneiras de viver. Zaratustra fala em nome da afirmação, ele dá voz a uma vida que nos quer grandiosos, não se pode perder isso.

Texto da Série:

Modos de Dizer-a-Verdade

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Zé
5 anos atrás

Somos todos esquizofrênicos. O que nos falta é uma mente brilhante.

Valdineia Fraga
Valdineia Fraga
5 anos atrás

Excelente!!!!!!