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Analisar como o pensamento e a vida se interligam produzindo um tipo de verdade; insistir sobre a aceleração que as ideias obtém das ações; averiguar o quanto essa prática filosófica unívoca produz de intensidade; foram os objetivos de Foucault em suas últimas aulas no ano de 1984. Bem formado, o filósofo grego apresenta na Ágora os três pólos da manifestação da verdade: a Alethéia e o dizer-a-verdade; a Politeia e o governo; a Ethopoiesis e a formação de si.

Condições e formas do dizer-a-verdade, de um lado; estruturas e regras da politeia (isto é, organização das relações de poder), de outro; enfim, modalidades de formação do ethos no qual o indivíduo se constitui como sujeito moral da sua conduta: são três polos ao mesmo tempo irredutíveis e irredutivelmente ligados uns aos outros. Aletheia, politeia, éthos: é a irredutibilidade essencial desses três pólos, e é sua relação necessária e mútua, é a estrutura de chamamento de um ao outro e do outro a um que, creio, sustentou a própria existência de todo o discurso filosófico desde a Grécia até nós”

– Foucault, A Coragem da Verdade, p. 59

Olhando para os gregos e para a raiz da filosofia, encontramos uma verdade que toma corpo no mundo, que se implica em relações com o outro e que volta a si mesma da mesma maneira que o cinzel encontra o mármore. É na figura do parresiasta onde essa irredutibilidade de um polo aos outros alcança seu auge. A parresia é o modo de veridicção que mais nos interessa. É nele que encontramos o pensamento colado na vida: saber prático, cortante, arma e ferramenta.

O parresiasta encarna a sua verdade, mas não é o único tipo que encontramos entre os gregos a trabalhar com ela. Começamos então a analisar os outros três tipos para contrastar com a parresía. Falávamos primeiro do profeta: seguido por crentes, revelando sua verdade por enigmas, emprestando sua voz aos deuses, fornecendo imagens do porvir.  Neste segundo texto vamos pensar o técnico. Como ele é reconhecido como sendo alguém que fala a verdade?

O que caracteriza o técnico, antes de mais nada, é o fato de que ele detém um saber prático. Uma tekhné, uma técnica. Estamos falando dos mestres, dos professores. Seu pensamento é tomado como verdade por ter uma materialidade inquestionável. Pensem no ferreiro e sua afiadíssima espada e impenetrável armadura, ninguém questiona sua verdade brônzea. Ao contrário, a ele se juntam por um laço de aprendizado.

O técnico fala em nome de uma tradição. Ele representa uma casa, uma escola. Ele deve passar seu saber adiante, deve formar seus alunos. Ele quer sem dúvida ser superado. Sua dádiva é o ensino, é a entrega daquilo que tem de mais verdadeiro. Sua realização é ver suas lições passadas adiante, formando linhagens, desenvolvendo-se em novas áreas. Pela voz de um grande mestre, erigem-se o tronco de um saber sólido e os ramos carregados de frutos.

Lyonel Feininger

A verdade do técnico é maior do que ele mesmo. Ele empresta seu pensamento e seu corpo a um fazer que existe desde antes dele, que foi transmitido a ele por um mestre, por um pai, uma mãe ou pela própria physis. É por isso mesmo que sua prática assegura sua sobrevivência, é o seu meio de vida e é também o seu dever. Mostrar como se faz do jeito mais claro possível, instruir uma prática num determinado sentido, evitar mal entendimentos e maus usos, ser responsável pela continuidade de um ofício.

Rodeado de aprendizes, o técnico fala aos poucos, de maneira clara e temperada e tenta responder todas as perguntas. Ele precisa transmitir o que pensa deixando o mínimo de brechas. Ele não foge do assunto, não desvia do fazer, alia teoria e prática. Ele mostra o que pensa em ato e com segurança, ele está autorizado pelo próprio alcance de sua prática. O bom mestre permite que o questionem, pois além de estar seguro do conhecimento que detém, sabe também que não pode deixar passar uma oportunidade de mostrar sua proficiência.

Esquematicamente, vemos cada um dos modos do dizer-a-verdade se apresentando segundo três variáveis: o vínculo, o domínio e o modo de palavra. Assim, o técnico possui essas três características e as apresenta na seguinte forma:

  • Qual o vínculo entre o técnico e seu interlocutor? A aula pode ser particular ou pode ser dada em grupo, mas possui sempre um vínculo de filiação. Há uma relação construtiva entre o técnico e quem o ouve. Todos que lá estão acreditam que podem aprender algo com o enunciador.
  • Qual o domínio do técnico? É a tradição, um passado que dura no presente. Um acúmulo de experiência que se apresenta exuberante. O campo de saber de onde o técnico fala, que o permite desempenhar sua função, é esse passado de aprimoramento.
  • Qual o modo de palavra do técnico? A maneira pela qual a técnica se enuncia é a didática. Ele fala francamente, mas pouco a pouco. Ele usa passos curtos, bem calculados. Estabelece exames para ter a certeza de estar sendo acompanhado.

Para entender melhor, vamos comparar esses três pontos com aquilo que sabemos sobre a parresía:

  • O primeiro ponto é já a principal diferença. O técnico vive através do ensinamento, é o seu saber prático que assegura sua sobrevivência, seja como profissão ou como subsistência. Ora, com a parresía se passa exatamente o contrário. A fala franca e direta é também corajosa e arriscada. Se não tomar cuidado, o parresiasta, ao revelar o que pensa, pode botar tudo a perder. A sinceridade como única aposta possível coloca em risco a relação ali estabelecida. Ao falar com os poderosos e soberanos na corte, ou para uma multidão enraivecida, o parresiasta arrisca a própria vida. O próprio risco é a maneira pela qual o parresiasta se vincula aos seus ouvintes. É por isso que dizemos que a parresía é o modo da coragem, ou que o parresiasta porta a coragem da verdade.
  • A tradição construída geração por geração num passado longínquo se apresenta num presente de transmissão. Assim, parresiasta e técnico estão no presente. Mas percebam como é diferente a colocação. O parresiasta fala de um presente denso, espesso, sem passado, sem futuro, pura presença. Ele manifesta sua verdade num domínio de singularidade, onde importa menos o que passou do que o que se passa.
  • Ambos tem a fala clara e direta. Mas o parresiasta não quer ensinar nada. Ele deixa a didática de lado. Seu papel é radicalmente outro, ele questiona o pretenso saber. Ele mostra a multiplicidade subjacente em uma aparente unidade. Ele desconstrói o saber instituído trazendo à luz suas incongruências. Ele é o mau aluno e o péssimo professor.

Chegaremos a parresía em momento oportuno, vamos seguir com a figura do técnico na filosofia. Para que saibamos bem a potência de um bom ensinamento e importância de um bom professor, trazemos como exemplo de técnico trazemos (Platão e sua Academia) Epicuro e seu Jardim!

“Nada é o suficiente para quem o suficiente é pouco”

– Epicuro, Carta sobre a Felicidade

O epicurismo foi uma das escolas helênicas com maior número de seguidores. Através de seus discípulos, o pensamento de Epicuro atravessou o mar mediterrâneo. Através de suas cartas, suas ideias alcançaram a ásia.  São vários os fatores que fazem dele um dos grandes mestres da filosofia antiga.

Epicuro

O epicurismo é uma prática de bem viver. Um hedonismo simples, bem trabalho em seus princípios: é possível evitar a dor e, mais do que isso, é possível ter prazer. É uma aposta na capacidade de estar no mundo de maneira potente sem ignorar as dificuldades que isso necessariamente coloca a todos. Fundamentalmente, Epicuro afirma que filosofamos com um corpo e a partir dele, que devemos colocar a dor em seu lugar na busca de um prazer supremo.

O epicurismo é um ensinamento livre. Não há distinção de gênero, classe social ou idade: todos podem filosofar, nunca é tarde demais para começar. É radicalmente diferente de outras escolas, como a platônica, por exemplo, onde só os homens podiam frequentar e só os ricos conseguiam permanecer. O jardim como sala de aula de uma didática da experimentação. Sem paredes, é só chegar e ouvir o que o filósofo tem a ensinar.

Epicuro promoveu entre os atenienses uma filosofia verdadeiramente ética, incitando a usar o pensamento na busca pela liberdade. Ataraxia não é a negação dos desejos e do corpo, ao contrário, é a afirmação de uma vida calma, serena e feliz. Pensamentos como “Os deuses não se importam conosco, então porque nos importamos com eles?”; ou “A morte só chega quando nós já fomos embora, então porque nos importamos com ela?” são verdadeiros exercícios práticos de libertação.

Epikouros, etimologicamente, é aquele que socorre. Epicuro parece ter levado seu nome muito a sério, pois foi um dos pioneiros a pensar a filosofia como uma espécie de medicina, uma terapêutica da alma, um cuidado com o corpo. Ao longo de sua vida, passou adiante suas lições básicas, seu tetrapharmakon. Seu último pedido, antes da morte, é aquele mesmo de todos os grandes mestres: “lembrem-se de meus ensinamentos“.

Texto da Série:

Modos de Dizer-a-Verdade

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Ricardo
Ricardo
5 anos atrás

Ele morreu em 1984.

Zé
5 anos atrás

Na verdade, não somos o que pensamos.