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À propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou viver livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que prefeririam somente à razão obedecer do que a um homem servir”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Dentro das relações de poder somos todos tristes! Não ousamos ser alegres e não podemos demonstrar nossa tristeza, vivemos em estado de suspensão, a vida passa sem que nada se passe. Não poderíamos pensar uma maneira mais miserável de existir. Vivemos na desconfiança, nenhum inimigo ousa mostrar as caras, então todos os amigos são suspeitos. O golpe pode vir de qualquer lugar, e quando menos esperamos…

Isso é viver feliz? Chama-se a isso viver?”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Para aqueles que vivem no isolamento, La Boétie tem um convite a fazer: dar as caras, sair, efetuar novos encontros. Dito de maneira simples: conviver, compartilhar experiências, reaprender a estar próximos uns dos outros. É preciso uma certa coragem para estar juntos, por completo, sem abdicar ou sentir-se constrangido. Que nome damos para isso? Amizade. A reciprocidade é uma de suas maiores características. A proximidade ajuda a suprir as carências de cada um e aumentar as qualidades. A amizade verdadeira instiga a viver em comum, por isso ela é impossível ao tirano.

De fato, o tirano não ama, nunca amou. A amizade é um nome sagrado, uma coisa santa; só se dá entre pessoas de bem e só sobrevive pelo apreço mútuo; e se baseia não tanto em favores, mas na boa vida”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Não estamos falando de imitação ou unidade, infelizmente confundimos e muitas vezes procuramos espelhos que reflitam todas as nossas características. Amigos podem ser, e muitas vezes são, muito diferentes. Então que fique claro, não queremos apagar as diferenças do mapa. O importante é a união criativa, potente, capaz de fazer a vida ser mais interessante. Amizade: virtude de poucos! Afinal, quem tem muitos amigos, na verdade não tem nenhum. Pois a cumplicidade é algo raro e trabalhoso.

Onde reina a injustiça, a perversidade, a maldade, a crueldade, não é possível uma amizade verdadeira. Como fazer amigos nadando no mar da desconfiança? Uma aproximação sincera exige que um não seja uma ameaça para o outro. Então precisamos de horizontalidade. Dentro desta relação de companheirismo temos a sensação de estar quites, ninguém deve nada a ninguém, estão todos no mesmo plano, no mesmo barco. A afeição e a estima geram a equidade e a isonomia, igualdade mesmo nas diferenças.

Faz sentido? Apenas escapa da servidão aquele que adquire relações de amizade e apenas pode ter amigos aquele que escapa das relações de servidão. Uma é condição da outro e toda amizade já é um pouco de saúde! Onde as diferenças não são um problema, pelo contrário, são uma adição, tudo se torna muito mais interessante.

Como já pudemos perceber, não há em La Boétie um programa de destruição do poder! Não encontraremos em sua obra os primeiros passos para uma destruição do capitalismo, uma guerra contra a burguesia. Não, os caminhos são outros. Uma linha de fuga faz este mundo desabar, algo escapa, um êxodo, uma alternativa, uma vida paralela. A pirâmide torna-se uma linha, ou um círculo, as perspectivas mudam, ninguém mais precisa olhar para cima.

Em vez de mergulharmos na marcha da história e apostarmos todas as nossas fichas na revolução, nós propomos encontrar “alguns”. Sim, isso mesmo, no lugar de uma ação política totalizante, fechada, nós sugerimos certas pessoas e certos lugares. Alguns poucos e determinados, mas confiáveis, afáveis, agradáveis, com quem sabemos que podemos contar. Chame de associações, como Stirner fazia; chame de ajuda mútua, como Kropotkin; podem ser sindicatos, qual o problema? Grupo, congregação, cooperativa, seita? Ok… o importante é manter as relações de apreço, afeição, camaradagem.

O que faz um amigo confiar noutro é a consciência de sua integridade: suas garantias são a boa natureza, a fé e a constância”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Nada poderia ser mais oposto à adulação aos tiranos do que a amizade! O tirano não tem amigos! Triste, né? Todo poder é assim, mantém-se por afetos que diminuem a nossa potência. A adulação é a contrafação da amizade, uma imitação barata, um falso brilhante usado pelos ignorantes. Ou será que o puxa-saco pensa que é amigo do chefe? Não… pois está em um plano diferente, um lugar inferior. Pode beneficiar-se, mas com certeza não desfruta de uma relação de amizade.

Entre os maus, quando se juntam, há conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, porém se entretemem; não são amigos, porém cúmplices”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Aqueles que conspiram não podem apreciar realmente a companhia uns dos outros, são cúmplices, sempre com uma pulga atrás da orelha, sempre desconfiados. “Será que ele vai me delatar?“, “Será que, na hora H, ele vai me trair e roubar a minha parte do dinheiro?“. Encontramos aqui a diferença definitiva: amigos sentem admiração mútua, se amam; já os perversos se reúnem para formarem complôs, conspiram entre si e por isso mesmo temem uns aos outros.

Não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; e, quando os perversos se reúnem, formam um complô, não um grupo de companheiros. Não têm afeto um pelo outro, mas medo; não são amigos, mas cúmplices”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

– Pawel Kuczynski

Em vez do discurso autoritário, a fala amiga; em vez de poder, potência; contra a verticalidade, a horizontalidade. Amizade rizomática refutando o Um. Não é preciso dar nada a eles, apenas se recusar a dar mais. Se antes a servidão era vivida como heteronomia, submissão ao outro; a amizade é a experiência de autonomia, mesmo na sua relação com o outro e até mesmo por causa desta relação diferenciada com o outro. A amizade é autonomia pois é o encontro que gera potência.

A amizade fornece razão (ratio: proporção, medida), nossa única arma eficaz contra tempos líquidos e absolutamente desmedidos. Relações que se mantêm pela constância, onde sabemos o que esperar do próximo, sabemos de sua proximidade, temos confiança em sua presença e apoio; relações de coerência, onde compreendemos o que nosso amigo quer e espera, há possibilidade de comunicação dos desejos, vontades e expectativas em relação à vida; relações de conveniência, claro, óbvio, pois um amigo é aquele que mais se harmoniza conosco, mais nos traz felicidade, boas experiências. As coisas se encaixam, tudo flui, a risada é a mais alegre, o abraço é o mais sincero!

A beleza da amizade está em ser uma relação onde o resultado da soma das partes é maior que cada uma delas individualmente. A vivemos como um ato político! Por quê? Porque é a recusa em servir! Onde existem relações de potência o poder se mantém distante! Nas relações alegres, o poder não cola. Ele precisa de tristeza, o que é raríssimo na amizade verdadeira. O poder consegue exercer-se apenas sobre aquelas pessoas que abaixam a cabeça e dobram os joelhos. Mas qual o mérito de reinar sobre escravos?

Esses miseráveis veem reluzir os tesouros do tirano e admiram deslumbrados a radiância do poder. Cegados por essa claridade, aproximam-se, sem perceber que se lançam à chama que inevitavelmente os consumirá”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Nas relações de poder, não se ama, se teme. E todos sabem, queremos viver sem temer. Pode parecer simples, mas depois de todo o desenvolvimento destes textos podemos dizer: contra a servidão voluntária, em oposição àquele que quer servir, nós buscamos e convidamos todos a experimentar a amizade como nova outra possibilidade de se relacionar. Basicamente queremos dizer, não seguiremos e não queremos ser seguidos, andaremos lado a lado, como bons amigos fazem.

Texto da Série:

La Boétie – Servidão Voluntária

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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7 Comentários
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Vivian Cristiane dos Anjos e Silva
Vivian Cristiane dos Anjos e Silva
5 anos atrás

Parabéns! Excelente texto, assim como muitos outros que já escreveu.

Zé
5 anos atrás

Só pode ser livre quem conhece a si mesmo.

Leoanrdo
Leoanrdo
5 anos atrás

Muito bom, parabéns pelo texto e pelo site. Ansioso para conhecer o podcast.

Anderson Francisco
Anderson Francisco
5 anos atrás

De quem são as ilustrações?

Belíssimo texto.

Luiz Augusto Passos
Luiz Augusto Passos
4 anos atrás

Magnífico. Uma abordagem urgente, sobretudo nestes momentos pelos quais a má fé, da dominação, possui instrumentos tão aliciadores a nos entregar de bandeja à exploração e à negação de nossa identidades, necessidade, valores e sentidos. Um trabalho precioso gráfico e de verbalização filósófica extraordinária de La Boetie. Um abraço com carinho. Luiz Augusto Passos http://gempo.com.br/portal/.

Adriana santos
Adriana santos
2 anos atrás

excelente

Andressa
Andressa
2 anos atrás

Olá Rafel, interessante reflexão. Por acaso, essa visão de poder que traz de Boétie lhe parece diferente da que vê em Foucault? Senti isso na leitura de seu texto. O que acha?