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Em seus últimos cursos no Collège de France, encontramos Foucault analisando a produção da verdade pelo discurso, mas não apenas do ponto de vista do saber arquetípico nem do discurso como poder instituído. É a análise do dizer-a-verdade como expressão de um modo de vida, ou seja, o que interessa é a formação do sujeito e de sua fala verdadeira.  Assim, Coragem da Verdade é o livro em que Foucault se debruça sobre os modos de veridicção procurando saber o quão intensa é a articulação necessária entre o sujeito, seu pensamento e sua vida; e o quanto essa intensidade trabalha a favor de uma vida singular.

A proposição já havia aparecido nos anos anteriores, marcadamente nas aulas que ficaram conhecidas como Governo de Si e dos Outros: a parresía é o modo em que a verdade é levada ao limite da franqueza. Assim, é o parresiasta que mais interessa. Ele é a ponta de flecha do discurso verdadeiro, carregando suas pontiagudas palavras, interferindo na vida comum, fazendo-a divergir, questionando-a e levando-a a um tipo específico de cuidado de si.

Foucault esquematiza quatro modos de dizer a verdade que ele encontrou em evidência no discurso dos gregos antigos. Na tentativa de delimitar esse campo, já escrevemos sobre os modos da profecia e da técnica.  Vamos agora pensar a sabedoria e contrapor a ela a parresía. Passadas essas três comparações, esperamos ganhar ao menos uma silhueta do parresiasta, ao menos aquilo que ele não é, para então, o encontramos em sua irredutibilidade, em suas características mais próprias.

Comparativamente, o sábio é o que mais se aproxima do parresiasta, pois o que o caracteriza é sua própria vida. O sábio é per se, ele da conta da existência de maneira tal que suas ações são a própria manifestação de sua verdade. A sabedoria é em ato, ela se apresenta pela maneira com a qual o corpo do sábio se compõe com o mundo. Ele entra em uma relação tão harmoniosa com a vida que sua existência é uma estátua viva, chamando atenção, iluminando o caminho por onde passa.

O que fala no sábio são seus excessos, seus acúmulos de sabedoria, prodigalidades da sua relação com o mundo. Ele cria sentido, ele impõe um ritmo próprio à vida. ele encontra constância, coerência e conveniência. A prática do sábio utiliza-se o caos sem torná-lo imóvel, sem abrir mão dele. A sabedoria é a fala de uma vida que vingou, que deu certo. Experiência e existência tornam-se uma só e mesma coisa no corpo do sábio, pois se entrecruzam na afirmação de uma maneira potente de existir.

Lyonel Feininger

Se o sábio fala, não é por necessidade, mas por transbordamento. Às pessoas vão até ele procurando por conselhos e ele pode muito bem não falar nada, pois a sabedoria é o discurso daquilo que o sujeito tem em comum com uma determinada maneira de se relacionar com o mundo. Se as questões que o dirigem não lhe forem pertinentes, ele pode muito bem ignorar. Ele não acrescenta nada ao que não lhe ressoa.

O sábio tem predileção pelo verbo ser no indicativo do presente: ele fala o que é. Para ele, tudo que interessa se apresenta sendo naquele momento. Se é obscuro para os outros, é absolutamente claro para ele. Ele colhe do mundo uma ontologia do necessário: “é desta maneira e de nenhuma outra”. Os seus ouvintes percebem sua sólida convicção. Não é o sabichão que diz saber de tudo mas nunca é reconhecido dessa forma, o sábio só o é enquanto é reconhecido como sujeito verdadeiro em uma relação ótima com o mundo.

Esquematicamente, vemos cada um dos modos do dizer-a-verdade se apresentando segundo três variáveis: o vínculo, o domínio e o modo de palavra. Assim, o sábio possui essas três características e as apresenta na seguinte forma:

  • Qual o vínculo entre o sábio e seus interlocutores? É o silêncio. Quem se dirige a um sábio naturalmente não pretende falar mais do que ouvir. As pessoas vão a ele para o ouvir, mas mesmo o sábio pode calar. Não é uma questão de crença, mas de uma certa confiança silenciosa. Os ouvintes não procuram o sábio por crer nele, mas por prezá-lo. É raro ouvir o sábio falar.
  • Qual o domínio do sábio? Não é a tradição, nem o destino, mas o ser do mundo. A ontologia é seu campo de saber. Ele indica como o mundo responde a sua maneira de ser: “aquilo que se apresenta é assim através de mim”
  • Qual o modo de palavra do sábio?  Assim como o profeta, o sábio não tem como não ser um tanto misterioso. Esse campo extenso e variável que é o mundo impõe essa dificuldade. As palavras não dão conta de apresentar com perfeita clareza a sabedoria. Ou seja, o sábio é também enigmático. É como se ele tentasse passar a receita para algo complexo demais.

Vimos como o profeta e o técnico se diferenciam bastante do parresiasta. Com o sábio, a questão é mais minuciosa. Mas as diferenças são importantes, vamos a elas:

  • O sábio tem uma reserva que lhe é essencial. Ele se afasta do chão comum e constrói um espaço de proficiência e, por isso mesmo, ele conquista o direito ao silêncio. Ele pode se isolar e falar apenas quando quiser. Já o parresiasta não, ele interrompe algo com sua verdade e precisa ir até o fim. Ninguém pede ao sábio que fale do que não sabe, já o parresiasta interfere inclusive ao limite do desconhecido, enfrentando convenções para arrancar delas o indeterminado.
  • Uma diferença bastante evidente a essa altura, é o fato de que o sábio, assim como o profeta, fala por enigmas, enquanto o parresiasta fala francamente. A missão do sábio é sua própria vida e ele só consegue falar daquilo que deu conta pela própria maneira de ser. Quando ele tenta passar aos outros, ele precisa tornar a sabedoria impessoal, daí a dificuldade. A missão do parresiasta não é essa, é outra, completamente diferente. Ele cuida de si e cuida dos outros. Ele precisa da fala franca para que sua interferência tenha o máximo de eficácia.
  • A sabedoria se coloca em algo que é necessariamente comum ao mundo e aos envolvidos. O ser do mundo nos envolve a todos. O sábio move noções comuns. O parresiasta, ao contrário, intervém naquilo que há de mais singular. Se o sábio fala do mundo e do ser de todas as coisas, o parresiasta fala de algo que se aplica em uma situação. Ele não revela a si mesmo pela fala, mas revela algo que está escondido, mas presente. Subterrâneo, mas existente. Subjacente, mas corrente.

Vamos esclarecer a parresía no último texto da série. Por ora, sigamos com a figura do sábio. Foucault nos dá um grande exemplo:

“No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos”

Heráclito, Excertos

De cara, percebemos o jogo enigmático das palavras. O sentido não é direto, mas obtido por uma interpretação. Precisamos confrontar o mundo com o que ele nos apresenta como sendo o ser (e o não ser) dele. Heráclito é o pré-socrático do “tudo flui”. Ou seja, quando eles nos afirma que somos e não somos, tal qual o rio, ele está dizendo basicamente que o ser do mundo é vir-a-ser: tudo em constante transformação, ao ponto de já não sermos mais o que fomos a alguns segundos atrás.

Hendrick ter Brugghen

Heráclito detém esse conhecimento do mundo. É isso que ele colhe da experiência de entrar no rio. Está tudo em movimento, como podemos chamar de rio se o que chamávamos de rio… passou? Como podermos ser os mesmos se todas as partes do nosso corpo mudam ao longo da vida? A receita que Heráclito passa para dar conta do mundo é recusar a imobilidade. Ele vive dessa maneira, ele sabe que tudo pode mudar, ele sabe o que pode e o que não pode esperar da existência.

Diógenes de Laércio, um dos antigos historiadores da filosofia, nos conta que a sabedoria de Heráclito era notória entre os seus contemporâneos. Em uma das anedotas, ele conta que os Efésios o chamaram para que ele criasse leis para a nova cidade, mas Heráclito preferiu “ir jogar ossinhos”, brincar com as crianças, dizendo: “Prefiro isso a participar de sua péssima cidade”. Ele se recusa, ele não precisa aceitar algo que não se componha com ele.

Diz-se também que ele vivia bastante isolado e em silêncio e, quando as pessoas o procuravam, ele pouco falava. À indignação dos seus ouvintes com o silêncio, ele retrucava: “Se me calo, é porque falais”. O silêncio e a distância são fundamentais para o sábio. Heráclito põe a natureza à prova. Ele precisa de sua solidão para trilhar esse difícil percurso. Além disso, ele só pode falar daquilo que deu conta, daquele conhecimento que tornou-se afeto, que não é apenas uma regra matemática da natureza, mas que se apresenta como a essência dela.

Heráclito sabe estender as suas ideias em sua prática e ele é reconhecido por isso. Ele não faz uma teoria, mas vive de tal modo que sua visão de mundo se afirma numa determinada maneira de entrar em relação com ele. Heráclito exemplifica aqui a constituição do mundo que se apresenta no corpo do sábio, como sendo o sujeito que não precisa falar sua verdade para ser reconhecido como verdadeiro.

Texto da Série:

Modos de Dizer-a-Verdade

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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