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“Descaracterizar a Moeda”

Platão e Diógenes

Diógenes era filho de um banqueiro, talvez um cabista, enfim, alguém que manipulava dinheiro. Há várias versões para a história, mas todas elas envolvem Hicésio, falsificando moedas e sendo descoberto. Diógenes é expulso de Sínope ou foge para não sofrer consequências piores.

Quando Diógenes vai ao oráculo de Delfos, escuta o seguinte conselho: “Parakhárattein tò nómisma“. A tradução do grego pode ser: “modifica o valor da moeda”, ou também, altera, descaracteriza a efígie. A vida e a filosofia cínica giram em torno deste tema. Nomisma significa moeda, mas Nomos significa lei. Ou seja, o conselho do oráculo de Delfos pode ser traduzido também por uma nova relação com a Lei, costumes, instituições, valores aceitos. Diógenes faz de seu modo de vida um desafio às normas vigentes. Mudar a efígie da moeda (quebrar com os valores antigos) para retomar seu valor (transvaloração).

O conselho do oráculo de Delfos aproxima Diógenes de Sócrates. Enquanto o primeiro foi foi reconhecido como o mais sábio dos gregos e aconselhado a “conhecer a si mesmo”, seguindo uma lógica da identidade; Diógenes foi aconselhado a mudar os valores, seguindo uma lógica da alteridade e da potência. Enquanto Sócrates buscava a si mesmo como um objeto de conhecimento, Diógenes buscava cuidar de si mesmo. O cuidado de si como única possibilidade para cuidado dos outros.

Sendo assim, seguiu para Atenas com a missão de inverter os valores vigentes, mostrar aos atenienses que a vida que levavam era falsa e sem valor. Foi assim que Diógenes conheceu Platão. O filósofo da Academia foi contemporâneo do filósofo cão. Não há registros históricos de seus encontros, mas mesmo como anedotas, o encontro entre Diógenes e Platão tem enorme importância filosófica. Assim Platão preconizava o caminho que a vida deve tomar para alcançar a verdade:

  • Não dissimulada – a verdadeira vida é oferecida ao olhar em sua totalidade, mostra-se em sua honra;
  • Sem mistura – não se deixa contaminar pelo que é impuro;
  • Reta – é uma linha reta, estável, que não se deixa desviar por atalhos ou outros caminhos;
  • Soberana – a verdade, existe e se mantém para além de qualquer mudança, não muda, não se corrompe.

O Sábio deve viver de tal forma que alcance o conhecimento puro, a verdade da vida, regrada, sem nada a esconder, sem perder-se no mundo dos desejo e vícios, sem desviar-se, sem fraquejar. A verdadeira vida é conforme o nomos, a lei. Diógenes viu tudo isso e riu, Platão não entendeu nada, provavelmente disse por entre gargalhadas. Viver como um cão, há maneira melhor de mostrar que os valores vigentes estão todos errados? A verdade da vida nunca será encontrada sem uma vida de verdade. Esta é a intenção de Diógenes.

Por isso Diógenes “Descaracteriza a moeda”, ele usa os ensinamentos de Platão para mostrar que o filósofo das ideias estava errado, iludido por um mundo supra sensível que ofuscava seus pensamentos. É necessário ir mais longe, tornar o pensamento mais radical. Repare que Diógenes não muda o metal da moeda (a própria vida), mas muda o valor dela. Atravessar o idealismo e sair do outro lado, pular do alto da torre e cair no mundo, dentro dele, no meio da realidade, não na procura de uma outra vida, mas na concretização de uma vida outra.

A reversão cínica transforma as orientações platônicas em quatro novas proposições que sistematizamos em quatro mandamentos: 

Em consequência, poderíamos dizer o seguinte, Através dos diferentes temas já evocados, vimos que os cínicos haviam revertido a ideia da vida dissimulada dramatizando-a na prática da nudez e do impudor. Eles haviam revertido o tema da vida independente dramatizando-a na forma da pobreza. Eles haviam revertido o tema da vida reta dramatizando-a na forma da animalidade. Pois bem, podemos dizer também que eles revertem e invertem esse tema da vida soberana (vida tranquila e benéfica: tranquila para si mesmo, gozando dela mesma, e benéfica para os outros) dramatizando-a na forma do que poderíamos chamar de vida militante, vida de combate e de luta contra si e por si, contra os outros e pelos outros"

FoucaultA Coragem da Verdade