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O livro Admirável mundo novo de Aldous Huxley foi escrito em 1931 e se tornou, ao lado do 1984 de George Orwell e do Laranja Mecânica de Anthony Burguess, um dos mais importantes romances distópicos do século XX. Oitenta anos passados de seu lançamento, reconhecemos na nossa civilização vários traços presentes no mundo imaginado por Huxley. O conflito principal se dá em torno da relação dessa nova sociedade com diferentes personagens. Em especial, a relação de dois deles: Bernard Marx, um individuo que nunca se encaixou neste mundo, e John, o nativo de uma reserva de “selvagens” que não tiveram contato com a civilização.

No ano de 632 depois de Ford ninguém mais nasce, são gerados in vitro no “Centro de Incubação e Condicionamento”. Desde a fertilização, projeta-se uma sociedade dividida em castas: Os Alfas, os Betas, os Gamas e os Ípsilons. Cada sujeito condicionado genética e psicologicamente para desempenhar melhor sua função de classe, moldado para trabalhar, sem questionar, naquilo que foi predestinado.  Ao Alfa, o desenvolvimento fetal considerado ótimo, ao Ípsilon, a exposição ao calor, ao frio, a privação de oxigênio no estágio fetal para gerar assim “o segredo da felicidade e da virtude”: fazer o trabalhador amar o que é obrigado a fazer. “Tal é a finalidade de todo condicionamento. Fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar”. Mais o menos o que a desigualdade social faz por conta própria no nosso mundo.

 “Para melhorar o seu sentido de equilíbrio – Explicou o Sr. Foster – Efetuar Reparos no exterior de um avião-foguete em pleno voo é um trabalho penoso. Nós retardamos a circulação quando eles estão em posição normal, de modo que fiquem parcialmente privados de alimento, e dobramos o afluxo de pseudossangue quando estão de cabeça para baixo. Aprendem, assim, a associar essa posição com o bem-estar. Na verdade, eles não se sentem verdadeiramente felizes senão quando estão de cabeça para baixo.” p.48-9

Nos berçários, as crianças nascidas são encaminhadas às “Salas de Condicionamento Neopavloviano”, onde são educadas nos primeiros anos. Todo o aparato psíquico é construído por um sistema chamado de Hipnopedia, “A maior força moralizadora de todos os tempos”, onde desde a primeira infância até a adolescência, os sujeitos ouvem durante o sono as instruções ideológicas da civilização, isto de acordo com suas castas, é claro! Frases como “As crianças Alfas vestem roupas cinzentas. Elas trabalham muito mais do que nós porque são muito inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta. E, além disso, somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Oh não! Não quero brincar com crianças deltas. E os Ípsilons são ainda piores. Como sou feliz por ser um Beta” serão repetidas centenas de vezes todos os dias antes das crianças acordarem “até que, finalmente, o espírito da criança seja essas coisas sugeridas, e que a soma dessas sugestões seja o espírito da criança. O espírito que julga, e deseja, e decide, constituído por essas coisas sugeridas[…]”. Raciocínio perfeito para um sistema que tem como elemento de coesão fundamental a satisfação dos prazeres. Saber o que quer o indíviduo é apenas o primeiro passo. No mundo de Ford (me parece que não só nele), os desejos são induzidos. “[…] Mas todas essas coisas são aquelas que nós sugerimos, nós!” Nós quem? Lá, no caso, o Estado.

Quando adultos, encontram-se então indivíduos perfeitamente adestrados e destinados ao trabalho e ao consumo, que mantém o sistema do capital industrial em pleno funcionamento. Além de receber o ordenado justo para cada classe, eles recebem também o soma, uma espécie de droga alucinógena “melhor que o álcool”, pois não tem grandes efeitos colaterais. Dois comprimidos de meio grama são suficientes para espantar o mal-estar, garantir a fuga das aflições reais. Recebem alguns comprimidos no fim de cada expediente, e dobro no sábado, pois é comprovado que mais tempo de folga causam “perturbações e um acréscimo considerável do consumo de soma“. Será coincidência que, no nosso mundo, sujeitos que vivem em função do trabalho e do consumo sentirem-se inúteis nas horas livres? Porque é que temos a tendência de relacionar tão fortemente as palavras ócio e tédio?

Para as horas vagas, o cinema sintético, em que todos os cinco sentidos são excitados, os esportes tecnológicos, que incentivam a indústria e, finalmente, o sexo. Não há mais família, não há irmãos, nem mães, nem pais. Não há maridos, nem esposas. O sexo, necessidade satisfeita sempre que necessário, é mais um instrumento de manutenção da estabilidade social, “Cada um pertence a todos”. Embora não haja ligação emocionalmente relevante entre as pessoas, o incentivo das relações meramente corporais é uma medida preventiva para a solidão, que gera indivíduos diferenciados.

“Comunidade, Identidade, Estabilidade” é o slogan do novo Estado. As relações de comunidade como reguladoras das particularidades, as identidades forjadas em laboratório para serem aquilo que é necessário que elas sejam e, por fim, mas não menos importante, a estabilidade gerada pela vontade sempre satisfeita de cada sujeito, pela felicidade duradoura que a civilização conquistou com a tecnologia.

“A arte, a ciência… Parece-me que os senhores pagaram um preço bastante alto pela felicidade – Observou o Selvagem quando ficaram sós.” p.279

A arte, a filosofia, a verdadeira ciência, como áreas questionadoras, instáveis, mutáveis, imprevisíveis por definição não têm espaço nessa civilização e por isso são substituídas por seus respectivos funcionais: o consumo, o cinema sensível, o progresso, o discurso, os manuais de instrução, o entretenimento.

Concluindo, será que essa produção de subjetividades em série está tão distante da nossa realidade? Creio que não. Eis a importância do livro e a justificação do termo distópico. Lendo o livro, o mundo descrito por Huxley já não parece tão novo, como ele mesmo diz no prefácio para a segunda edição (1946):

“[…] a utopia parece estar muito mais perto de nós do que qualquer pessoa, apenas quinze anos atrás, poderia imaginar. Nesta época, eu a projetei para daqui seiscentos anos. Hoje parece perfeitamente possível que o horror esteja entre nós dentro de um único século. Isto é, se nos abstivermos de nos explodirmos antes disso”

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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