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Anarquia Relacional

Princípios para a alegria-mútua

“Quanto mais amor faço, mais quero fazer revolução. Quanto mais revolução faço, mais quero fazer amor”

Uma vida talvez seja a soma dos problemas os quais nos dedicamos a responder. Se assim for, resta talvez pouca coisa mais interessante do que pensar o amor. Não por sua altiva sacralidade, mas por sua intensa presença. Dedicar-se ao amor é cuidar das relações como quem conversa com as plantas: elas não respondem, mas a relação certamente se qualifica em um campo de afetos mais amplo.

Antes de começar, é preciso desfazer alguns mal entendidos. Primeiro, anarquia é um termo que suscita muitas contradições e, mais do que nunca, devido às diversas capturas que sofreu, este nome precisa de explicação. Para nós, anarquia refere-se simplesmente ao esforço pela horizontalidade, no sentido em que toda autoridade é questionada em sua própria capacidade de se colocar enquanto tal. É sempre bom lembrar, anarquia não é bagunça, não é a ausência de regulação, é uma busca por uma dinâmica própria às relações.

Escolhemos o trabalho de Susanna Bauer para ilustrar essa série

Assim sendo, anarquia relacional é a tentativa de relacionar-se sem a mediação de um princípio exterior à própria relação. Isso traduz-se no cuidado em se colocar sempre lado a lado aqueles com quem nos relacionamos, isto é, reivindicar a autonomia dos envolvidos, deixando o governo para os que desejam ser governados. Estamos falando de amor. Se parece política, é porque é.

Uma forma de amar que recusa ser mediada por formas preestabelecidas socialmente se converte diretamente em um questionamento da moralidade: a família patriarcal e seus valores burgueses. Ao resgatar o amor da noção de propriedade, estamos inventando um modo micropolítico de nos relacionar. Ao pensar um conceito de amor como alegria-mútua, estamos buscando uma fundação afetiva mais interessante para as nossas vidas em sociedade.

Segundo, há tantas formas de amor quanto maneiras de amar. O amor é a simples derivação de uma alegria e se apresenta de forma bastante concreta, ainda que fruto de abstrações. Colhemos uma alegria prontamente e a identificamos com alguém, ainda que não saibamos dizer exatamente porquê. É cotidiano como um entrecruzar desconhecido e raro, como uma carta cuidadosamente redigida ao longo dos anos. 

Sim, o amor é real como um tijolo que nos cai sobre a cabeça, deixando-nos deliciosamente desnorteados. Incontestável como é, não pode ser visto como nada mais do que necessário. Se é tão elementar, porque as sempre recorrentes dificuldades desse afeto? Ora, amar é colocar-se nas mãos de outrem, é abrir-lhes um espaço de grande intensidade, que é o da íntima relação. Amar é devir, e devir é abrir-se para algo que não se sabe bem o que é nem onde vai dar.

Terceiro, não partirmos de nenhuma fórmula pronta: poliamor, poligamia, relacionamento aberto, assim como monogamia, casamento, parceria – são possibilidades, não obrigações. Queremos que nossas relações sejam mais adequadas em relação aos nossos desejos, o que provavelmente significa que elas serão inadequadas da perspectiva da sociedade. Assim, podemos usar o nome que quisermos – principalmente para causar fissuras nos edifícios moralistas – mas com o cuidado de não sermos aprisionados por eles.

Em resumo, a anarquia relacional é uma prática de contestação da autoridade em função de uma ampliação das maneiras de amar que se recusa a partir de uma forma estática idealizada para além da própria relação. Nos textos que seguem propusemos princípios para uma anarquia relacional, com a intenção de facilitar o amor como alegria-mútua:

1. Abundância: “Partimos de um princípio de abundância para descaracterizar o amor como um recurso limitado. Somos tão capazes de amar múltiplas pessoas ao mesmo tempo, quanto somos capazes de amar de múltiplas maneiras uma mesma pessoa.”

Abundância

2. Integridade: Somos seres desejantes e precisamos sê-lo integralmente. O que isso significa? Não podemos deixar de lado o que há de fundamental em nossos desejos, pois isso é desconsiderar a nós mesmos. O que somos? Desejo, então o sejamos por inteiro. Deixar de menosprezar aquilo que sentimos pode ser assustador, pode exigir mudanças, abalar estruturas, desmontar máquinas funcionais, mas é a única maneira de viver com alguma intensidade.”

Integridade

3. Interesse Quando falamos em interesse, pensam logo – e de forma pejorativa – em egoísmo. No entanto, se desconfiarmos por um momento, veremos que pensar em si não significa desconsiderar o outro. Isto é, um interesse não é necessariamente individual e unilateral. Uma relação que desconsidera completamente o outro não pode ser amor. Quem pensa apenas em si mesmo acaba se relacionando com os outros por predação, relações abusivas, ou por parasitismo, relações de dependência. Alguém que realmente pense em si sabe que a melhor forma de ganhar é pensar também no outro. O amor só existe como alegria-mútua.”

Interesse

4. Devir – “Devir é o desafio de sentir-se mais próprio sendo outro. É um delicado equilíbrio, porque há sempre o risco de fundir-se e perder-se na dependência. Princípio básico da anarquia relacional: envolver-se sem prender, tanto a si mesmo como aos outros. Tornar-se outro, mas sempre acompanhado de si – eis a fórmula difícil, porém necessária, para transformar o dever-amar em devir-amor.”

Devir

5. Espanto: “Não queremos nos relacionar com o mundo descobrindo sempre o mesmo a dobrar cada esquina, por trás de cada rosto. O espanto é nossa medida para a diferença, para aquilo que é sempre outro, sempre múltiplo. Estamos cansados da vida de sempre, cotidiana, repetida, mecânica, comprida. A anarquia relacional preza pelo que há de inédito nos encontros, por isso não compara, não hierarquiza, não prioriza, não julga o que há de singular em cada relação. Cada pessoa é uma porta para a multiplicidade enquanto intensidade, enquanto efetuação de uma vida mais viva.”

Espanto

6. Sinceridade: “O que significa estar junto senão coexistir nas questões? Comunicar algo aos outros não é informar, entregar algo pronto, mas buscar um campo comum para a construção de algum entendimento. Ser sincero é menos informar o outro de algo, do que entender algo junto do outro. A única condição é o acolhimento. Não podemos punir uns aos outros por sentirmos as coisas de maneiras diversas. Não podemos culpar uns aos outros por sermos afetados de inúmeras maneiras. Não podemos castigar uns aos outros por não corresponder sempre àquilo que se espera de nós. Privilegiar a sinceridade depende de uma disposição em acolher o inesperado.”

Sinceridade

7. Confiança: Etimologicamente, confiar (con | fidare) significa simplesmente acreditar no outro, o que por si só já é interessante, pois nos tira de um estado de medo constante de que o outro esteja contra nós. Mas talvez a confiança seja mais do que isso: confiar não seria fiar junto do outro? Se a etimologia é pouco, partimos para a poesia. Confiar é tecer, é acreditar na possibilidade de encontrar o cruzamento onde nossas linhas se fortalecem em nós, entre nós.”

Confiança

8. Envolvimento: “O envolvimento é a criação de novas articulações com o mundo a partir dos encontros com os outros. Quando nos envolvemos multiplicamos nossos olhos, ampliamos nossa pele, somamos nossas vozes, aumentamos a interface entre os afetos e a vida. Mas não apenas quantitativamente, alteramos a qualidade mesma daquilo que somos.  Andar bem acompanhado é ser mais múltiplo naquilo que acontece e, consequentemente, ter mais parte em todo acontecimento. As coisas definitivamente não se passam da mesma maneira quando estamos juntos de quem amamos.”

Envolvimento