Vezes e vezes sem conta nos deparamos com o seguinte problema: como, depois de negar todo valor transcendental, sustentar a noção de belo? Parece impossível pensar em outro fundamento que não a criação, pois somente a criação pode preencher o vazio estético das coisas sem finalidade. Sem mais delongas, gostaríamos de insistir mais uma vez que nossa proposta nesta coluna, neste texto, neste blog é unicamente a de combater construções nocivas e criar, por sobre os escombros, novas possibilidades de valor.
Neste sentido, gostaríamos de apresentar mais uma prática de apreensão estética dos objetos, aqui no caso objetos musicais. Como a prática apresentada no texto anterior (O papai voa!), esta depende igualmente de um exercício de percepção, de atividade frente ao objeto artístico. Não nos referidos somente à percepção de notas, acordes e melodias, mas a percepção do tempo, mais especificamente do Kairos.
Esta distinção grega entre Chronos – o tempo comum – e Kairos – o momento oportuno do acontecimento – é, para o nosso exercício, muito importante. A percepção de que existem momentos, pontas ou picos no tempo é que nos permite valorizar a ideia de encontro. Valorizar propriamente os encontros de Chicos e Miltons, de Toms e Elises, de Boscos e Blancs. E não apenas de dois em dois, pois não faltam Clubes nas Esquinas por onde se fazem músicas em conjunto.
O próprio ato de pensar as condições de encontro que tornaram possíveis sinfonias como a oitava de Mahler, conhecida como sinfonia dos mil por necessitar de uma enorme quantidade de músicos (orquestra completa, coral adulto, coral infantil e oito solistas), já é uma experiência estética à parte e só teremos a ganhar se associarmos a obra com suas contingências. Por outro lado, não é apenas a improbabilidade ou dificuldade da execução da música que nos dará seu valor, mas pensar no encontro, não só dos mil músicos, mas no de Mahler e Goethe. Fato é que um dos principais livros (O fausto) de Goethe e, talvez da literatura alemã, encontrou-se e inspirou Mahler a compor uma das mais grandiosas obras de arte do século XX, e pensar isso nos garante outra dimensão de apreciação. Se há no acaso beleza sem igual, há no encontro sorte sem tamanho.
“Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade precedente ou seguinte, o pequeno espaço que preencho e, inclusive, que vejo, abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me aterrorizo e me espanto com me ver aqui, em vez de lá, porque não há razão de por que aqui e não lá, de por que agora em vez de então” – Pascal.
Outro passo ainda nos é possível em nosso exercício. Pensar nosso encontro com estas obras, que nada mais são do que feitos de vidas dedicadas à arte, à experiência possível de intensidades presentes. Mas nosso fado é tamanho que muitas vezes carregamos a possibilidade de reviver este momento com gravações, partituras, montagens e textos. Pensar que Miles e Coltrane já tocaram juntos e que isto foi gravado para que possamos ouvir me deixa estupefato. Não por se tratar de um encontro qualquer, mas do encontro certo entre dois gigantes da expressão de uma determinada estética. É como se houvessem congelado o tempo naquela sala de gravação da Columbia Records onde foi gravado o Kind of Blue e nos dada a possibilidade de estar lá mesmo nascendo trinta anos depois ou, para os nascidos antes de 59, estando em outros espaços que não aquele.
Miles Davis
Album: Kind of Blue (1959)
Faixa 3: Blue in Green
Solistas: John Coltrane (Tenor)
Bill Evans (Piano)
Miles Davis (Trompete)
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”. Sábio Vinicius, que percebeu no Chronos sua maior qualidade: a de carregar em si a capacidade de tornar-se encontro, momento, ponta, cume, pico, auge, intensidade, Kairos. Quanto aos encontros tantos dos quais resultam estas e outras belas obras, nada podemos desejar além de que encontremo-nos sempre e novamente por seus caminhos.