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Deleuze escreveu em vários momentos de sua vida sobre a psicanálise, principalmente em “O Anti-Édipo“, até finalmente se afastar completamente dela em Mil Platôs. Sua posição crítica está resumida em um artigo bem simples intitulado: “Cinco Proposições sobre a Psicanálise”, onde ele procura, de forma perigosamente sucinta, explicar por que sua filosofia da diferença não pode conciliar-se com a máquina interpretativa psicanalítica.

Francis Bacon

1. A psicanálise funciona ao ar livre

Se o perigo teórico da psicanálise é a metafísica edípica, uma posição mais crítica exige mostrar que o funcionamento prático da psicanálise “poros livres da sociedade” é tão importante quanto. Não mais agindo dentro do consultório, no divã, mas agora dentro das escolas, empresas, hospitais psiquiátricos, área social, etc. Dizer “Todos deveriam fazer terapia”, é dizer que todos devem ser devidamente colonizados pela discurso psicanalítico. Ela leva consigo o discurso do inconsciente para todos os cantos, “mas é sempre para reduzi-lo”. Para Deleuze, “trata-se […] de produzir inconsciente”. O inconsciente não está dado, ele deve ser feito, construído, buscado. Como quebrar com o inconsciente psicanalítico da interpretação e das imagens familiares para finalmente produzir seu próprio inconsciente?

2. A psicanálise é uma máquina já pronta

Este é um dos grandes problemas da teoria psicanalítica: ela já está pronta! Sua instituição é uma igreja, com seus livros e seus discursos. Por mais que tentem, tudo que fazemos é codificado, reduzido a Édipo, castração, o romance familiar. O psicanalista não escuta, apenas coloca tudo na caixinha da teoria psicanalítica e devolve tudo que foi dito deformado. Os fluxos param, são estancados, entopem e, muitas vezes, morrem. A máquina interpretativa não permite linhas de fuga: “produz-se uma espécie de esmagamento graças à psicanálise, que dispõe de um código pré-existente”. A psicanálise não dá conta das multiplicidades, ela esquematiza tudo em um discurso familiar que não abrange o campo histórico-social do desejo: “as classes, os povos, as raças, as massas, as matilhas”. Por isso, quando o pequeno Hans passa a temer os cavalos, Freud só consegue enxergar a figura de seu pai.

3. A psicanálise dispõe de uma máquina automática de interpretação

Tudo que o analisando diz, o analista entende outra coisa. Tudo que o analisando fizer, pensar, agir, o analista interpretará outra coisa. Esta cilada psicanalítica os permite falar em “livre associação”. Mas trata-se de um engodo, você pode falar o que quiser porque seu discurso não é “livre”. No fim das contas, o analista sempre achará papai e mamãe. Como encontrar o novo? Como abrir-se para o novo? Certamente não é voltando para a caverna de Platão e contentando-se com imagens e interpretações. Deve-se, isso sim, experimentar mais do que interpretar! Uma análise antipsicanalítica descobre os agenciamentos e encadeamentos que nos produzem.

4. A psicanálise implica uma relação de forças bastante particular

A psicanálise está do lado do capitalismo, ela é sua bedel, cuida para que a formação de subjetividades se encaixe no projeto de colonização de mentes e corpos. Por isso ela se utiliza da forma burguesa liberal do contrato. Assim ela ganha a permissão para enfiar goela abaixo a família, a falta, castração, desejo (sempre como falta), “mas você aceitou o contrato, então a culpa é sua”. Estes enunciados coletivos são próprios de nosso tempo, se inscrevem em nosso período histórico. Esta prática inscreve o indivíduo em seu tempo, sem dar chances de fazer seus próprios enunciados, para criar suas próprias linhas de fuga. Apesar dos esforços psicanalíticos, Édipo não é universal – nós que olhamos o universo com os olhos edípicos. “É preciso fazer exatamente o inverso, quer dizer, partir dos verdadeiro enunciados individuais, dar às pessoas condições, inclusive condições materiais, de produção de seus enunciados individuais para descobrir os verdadeiros agenciamentos coletivos que os produzem”.

5. Não desejamos, no que diz respeito, participar de tentativa alguma que se inscreva numa perspectiva freud-marxista

Por quê? O freud-marxismo ainda está preso às origens, ainda possui ídolos (dois, no caso). Seus textos são sagrados, revistos, reexaminados para encontrar a verdade que foi distorcida na realidade. Queremos quebrar o aparelho burocrático psicanalítico e marxista. Ainda há um culto à memória, “acreditamos, ao contrário, que é preciso falar em nome de uma força positiva do esquecimento”.

Todas estas questões são muito complicadas para serem expostas em poucas linhas, até mesmo porque no próprio artigo do Deleuze estas proposições já são curtas. Aconselhamos a leitura de outros textos de nossa página (ver, Esquizoanálise) e dos livros de Deleuze e Guattari que tratam do assunto.

O que nos interessa atualmente são as linhas de fuga nos sistemas, as condições nas quais essas linhas formam ou suscitam forças revolucionárias, ou permanecem anedóticas. As probabilidades revolucionárias não consistem em contradições do sistema capitalista, mas em movimentos de fuga que o minam, sempre inesperados, sempre renovados”

– Deleuze, Cinco proposições sobre a psicanálise

Texto da Série:

Esquizoanálise

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Marco
Marco
10 anos atrás

Então, meus queridos, como se produz inconsciente?

JD Lucas
Reply to  Rafael Trindade
10 anos atrás

Perfeito.

Mara
Mara
Reply to  Marco
9 anos atrás

Vivendo.

Simone
Simone
Reply to  Mara
5 anos atrás

Vivendo, é o único fluxo

Johanna Beringer
9 anos atrás

Cara, Deleuze colocou em palavras o que vinha atordoando meus pensamentos há meses. Por que só descobri agora toda essa maravilha?

Maria Emérita
Maria Emérita
9 anos atrás

A psicanálise foi uma invenção sem precedentes para a época mas foi genial a sua reinvenção feita por Deleuze (e Guattari) com o anti-édipo.
Muito bom esse blog.

And
And
9 anos atrás

Ótimo blog.

No item 2 quem sonha com lobos, não é o “Pequeno Hans”, mas sim o “Homem dos Lobos”.

Brunna Furst
Brunna Furst
3 anos atrás

Fico pensando em como a psicanálise poderia ser usada por psicanalistas e esquizoanalistas justamente entendendo ela como fruto do capitalismo e produção da falta no controle dos corpos. Não negando Édipo mas justamente afirmando enquanto produção, identificando as forças de controle pra se libertar desse inconsciente edipiano. Totalmente incompatível nesse sentido? O que pensam sobre?