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Apresentamos aqui um Espinosa nietzschianizado. Simplesmente porque nos convém fazer certas ligações, porque gostamos de sobreposições e justaposições. Espinosa e Nietzsche têm muitas semelhanças, já apontadas em outros textos (veja aqui). Neste caso específico, as Três Transmutações do Espírito, anunciadas por Zaratustra, ressoam com os Três Gêneros do Conhecimento de Espinosa, e podemos levá-los adiante, acelerar o pensamento, jogar a flecha mais longe só pelo prazer de ver aonde chegaremos.

Não nos surpreende perceber que o Camelo, o Leão e a Criança estão muito próximos do Vulgar, do Homem Virtuoso e do Sábio expostos na Ética. Qualquer filosofia que se empenhe em destruir superstições, eliminar o ressentimento, derrubar ídolos, chegaria nestes pontos em comum. Mas qual seria nosso critério de avaliação destes “tipos”? Como poderíamos diferenciá-los? Pela potência, claro! Se existe uma diferença entre um e outro, se traçamos uma linha reta que envolve a potência de existir de cada um, certamente precisaremos aprender a sair do primeiro para podermos entrar no último.

O vulgar vive de maneira quase inconsciente de si, porque ainda vive no reino das imagens. É triste constatar isso, ele conhece os efeitos, mas não suas causas; conhece seus desejos, mas não os motivos que o faz desejar; sabe que se move, mas não sabe o porquê. O vulgar imagina ser livre, mas entende liberdade como livre-arbítrio; conhece a multiplicidade, mas a entende como possibilidade de escolhas; sendo assim, devaneia com a ilusão de seguir seus impulsos passionais, mas tem medo das leis e mandamentos superiores que tanto o ameaçam, por isso maldiz o mundo e é temente a deus.

O Vulgar vive de maneira servil: lambe as botas do poder e espera ser recompensado após a morte; é o famoso puxa-saco, bajula os superiores e pisa nos inferiores; se conserva em estado de suspensão, tem medo e ódio de tudo que é diferente dele e ama os que pensam da mesma forma. Ele é o paradigma da vida fascista, tão alertada por Michel Foucault, porque sabe viver apenas na moral e nas formas de poder constituídas, não sabe inventar para si novos modos de vida.

O Vulgar está preso a imagens, aparências e preconceitos. Ele não consegue concatenar suas ideias de maneira a escapar dos efeitos que os corpos têm sobre ele. É o revoltado que não faz nada para mudar as coisas, é o ressentimento em forma de política (veja aqui). O que é mais triste: o homem vulgar é efêmero, ele não tem acesso à noção de eternidade sem perder-se em uma eternidade fora do tempo, do mundo e da realidade! Conclusão: grande parte do homem vulgar morre junto com seu fim. Logo ele, coitado, que esperava ir para o céu receber suas tão aguardadas recompensas.

O Camelo é a representação mais bem acabada deste homem ressentido, fraco, que vive para maldizer e acusar tudo e todos. Ele dobra os joelhos e pede por valores para carregar, e ainda se orgulha disso. Na Imaginação ele não encontra a saída para seus problemas porque se pensa como um Império dentro de um Império, está isolado de tudo e de todos, não quer e não tem parte nesta existência. “O mundo não presta”, diz ele, “o homem é mau por natureza”.  Seu isolamento é impotência, sua companhia é desengonçada, interesseira e imprudente. Como sair deste campo da servidão? Como transformar a covardia do Camelo em ousadia leonina?

Van Gogh

Espinosa traz a Razão como ferramenta mais potente para sair da servidão e entrar no campo da liberdade, por isso esta distinção entre os três gêneros do conhecimento. E como conhecer mais? Ora, através dos bons encontros e das alegrias advindas dos mesmos. Há uma lógica possível nos afetos, em Espinosa, a alegria é nossa maior mestra. Nós gostamos da racionalidade espinosista porque ela não é ascética, fria e calculista. Diferente da razão calculista de Descartes, Espinosa nos traz uma Razão Inadequada, enraizada nos afetos e na possibilidade de compreendê-los, medi-los e moderá-los (veja aqui).

O Homem da Razão compreende as propriedades comuns entre ele e o mundo que o cerca. Este é o caminho: sair do campo da imaginação e mergulhar na Razão, que começa a medir e transmutar os valores. O Leão diz não ao “Tu Deves” inscrito nas escamas do Dragão, porque começa a tomar sua própria existência como medida para responder “o que pode o corpo?” e ampliar seu grau de potência, sua capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo.

Espinosa é o filósofo do conhecimento como o mais potente dos afetos. E é através das experimentações que um conhecimento se torna afeto. Não estamos mais falando do homem vulgar que precisa de paixões ou cai em um tédio insuportável, nem daquele que é escravo daquilo que lhe acontece. Através destas ligações efetuadas pelas noções comuns, o conhecimento tem a chance de tornar-se o mais potente dos afetos, porque sabe qual caminho percorrer para tornar-se mais alegre, mais forte, mais virtuoso. A razão oferece caminhos novos, nunca trilhados, criadores; tornando o homem capaz de valorar, moderar, compreender seus valores.

Este processo leva o homem virtuoso a deixar o campo da servidão e dos valores ascéticos para tornar-se um Sábio. O Sábio é um Devir-criança. É preciso atravessar a rebentação, desconstruir-se, dessubjetivar-se. Do esgotamento do Camelo escapam linhas que se ligam a outros afetos, outras possibilidades, outros modos de afetar e de ser afetado. O Homem Virtuoso torna-se Sábio porque, através dos encontros que realiza e estabelece, entra cada vez mais na Beatitude que apenas o conhecimento intuitivo é capaz de oferecer.

Ainda assim, é preciso prudência! Muitos se esquecem desta palavra. Depois de destruir, é preciso colocar algo no lugar. O Sábio aprendeu a lidar com a mais profunda solidão, claro, mas não quer viver isolado do mundo. Ele sente que não é mais apenas um ser no mundo, como um intruso, como um acaso, mas que tem parte na existência, como aquele que age, legisla, cria, transmuta, ele é a representação do niilismo ativo! Sua alegria é de sentir-se parte da criação divina. Ele sorri um riso fácil e sincero.

Eis o Sábio, eis aquele que compreendeu as relações de coerência, conveniência e constância entre os corpos e ele. Ele sim teve o seu devir-todo-mundo. Não há qualquer outra possibilidade senão viver aquilo que se é. Sabemos agora que é impossível fugir da existência, então queremos abraçá-la o mais forte possível, amá-la! Amor-fati tornou-se sua natureza mais íntima.

O que quer esta sabedoria? O que quer, diz Nietzsche, esta roda que gira por si mesma, para além do bem e do mal? O Sábio procura pela diferença, pela afirmação, por aquilo que dê conta de ir até seu limite e ultrapassar-se. A beira do abismo é pouco, porque ele aprendeu a voar! O mar está aberto e as velas estão içadas! Se Nietzsche chamou o homem vulgar de último dos homens, então temos certeza de que o sábio espinosista está próximo do além-do-homem. Ele vive, tornou-se parte da eternidade, não a atemporal (imaginada pelo Vulgar), mas a do próprio mundo que se recria a todo instante. Tudo é Deus, tudo está em Deus, por isso o pleno contentamento do sábio, que mais parece uma criança ávida por experimentar seu novo brinquedo chamado imanência.

Sim, para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora a sua vontade, o perdido para o mundo conquista o seu mundo”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Das Três Metamorfoses

Mas quem dirá que é fácil? Quem poderá dizer que em cada esquina se encontra um Sábio? Não basta olhar no espelho e dizer convicto: “Sou um sábio, nada pode me abalar”. Nada disso… não queremos a ataraxia estoica… o caminho é longo. Sabedoria é devir, é construção, é exercício, é meditação, é escultura de si! Quem disse que seria fácil tornar-se espontâneo?

Para o Vulgar, impossível, ele nunca é ele mesmo, e mal sabe disso; para o Homem Virtuoso, ainda um peso, uma luta, uma cansativa batalha; mas o Sábio aprendeu a dançar, ele tornou-se leve, sua espontaneidade confunde-se com sua singularidade. O Sábio é:

Um novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim”

– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

Textos da Série:

 

Gêneros do Conhecimento

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Dioglas Andre
Dioglas Andre
7 anos atrás

Obrigado, pela partilha do alimento.

sirinawadud
7 anos atrás

tuas reflexões são tão alentadoras… aprendendo contigo.

Fabio
Fabio
7 anos atrás

Parabéns seus textos são excelentes, pois proporcionam um aumento
alegria no ato da leitura

Wallace Alves
7 anos atrás

O texto,sem dúvida,estimula rompermos com esse padrão monótono que deparamos cotidianamente.É mesmo um alento para desmitifica valores pré-estabelecidos.No entanto,não se tornar um “vulgar” é mais difícil do que se desvencilhar deles.

Douglas Marques
4 anos atrás

Salve, Zaratustra ! Salve, Espinosa !!

Ricardo
Ricardo
1 ano atrás

Que texto maravilhoso! Obrigado