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Antes ver as próprias entranhas ao sol e agonizar, ferida mortalmente, do que uma vida da qual alguém possa se apropriar.”

– Monique Wittig, As Guerrilheiras

Existem ideias fundamentais para a luta, mas ideias também se desgastam com o tempo. É natural, são muitos os combates. Como o fio da lâmina de uma espada, precisamos, vez ou outra, afiá-las. No caso das ideias, esse processo consiste em recuperar seus sentidos principais, trazê-los novamente à tona para que não sejam esquecidos. Nosso tempo convoca agora à tarefa de repetir determinadas palavras que de forma alguma envelheceram, mas que certamente foram confundidas em meio ao ruído da batalha. Dizer novamente o que há de importante em um nome é a melhor maneira de constituir um terreno comum por meio do qual possamos fazer alianças. “Feminista” é uma destas palavras-chave, que hoje anda como insulto pela boca de tanto macho escroto. Operemos então um resgate, para que não nos confundam.

O que faz de alguém feminista é o interesse em aliar-se com uma ideia bastante simples: a saber, a de que a diferença de gênero em nossas relações se faz de maneira opressiva. É isto o feminismo, uma teoria da opressão de gênero que leva a uma prática de combate às violências cometidas em função dele. Há séculos, nossas relações são cortadas por uma distinção arbitrária imposta na hora do nascimento e reforçada socialmente por meio das mais variadas forças. De forma muito resumida, essa diferença de gênero estabelece que alguns corpos podem ser apropriados, ainda que por meio de violência: mulheres, é o nome que designa estes corpos; homens, por outro lado, são aqueles que nascem com o direito de posse sobre si mesmos e tudo aquilo que puderem conquistar por quaisquer meios que considerarem legítimos. O feminismo é o fruto daquelas que nunca aceitaram tais definições, reivindicando para si a liberdade de tal condição.

Dada a definição do que faz de alguém feminista, percebe-se facilmente que não é preciso ser mulher para ser feminista. Muito simplesmente, ser feminista é valer-se de um conjunto de ideias sobre a opressão de gênero para agir no mundo de forma a transformá-lo. Por que são tão poucos os homens a se declararem feministas, então? Ora, é evidente, porque para ser feminista é preciso ir contra o mundo que está dado, recusando privilégios estruturais, participando do sofrimento coletivo, compartilhando tarefas doloridas, assumindo parte da culpa. No entanto, não é preciso se tornar um herói para se dizer feminista, pois recusar-se à participar da violência machista não é nada digno de mérito. Para começar, basta ler, escutar e celebrar as vozes de tantas mulheres que têm cantado suas lutas pelo mundo afora. Para inventar um novo estado de coisas no que concerne ao gênero, é preciso aprender uma nova alegria, aquela que nos toma quando participamos de ideias justas, quando nos aliamos e estreitamos relações em função delas.

Qualquer um que acredite ser injusta a distribuição desigual de direitos tais como saúde, segurança e trabalho entre os gêneros, já é um pouco feminista, ainda que não o saiba. Bastando apenas transformar a consciência dessa injustiça em prática cotidiana para tornar-se de fato feminista. Aqueles que acreditam não existir tal injustiça, que consideram loucas as feministas, não são apenas conservadores, são abusadores por excelência, que chamam de família o grupo seleto de pessoas sobre as quais efetuam as maiores violências. Estes machistas orgulhosos, membros de uma classe que chamamos de patriarcado, são nossos inimigos, pelo simples fato de que eles têm chamado de amor o que não pode ser senão uma propriedade – e isto é intolerável.

A história nos presenteia com uma enorme diversidade de ideias que foram se modificando conforme o tempo e o uso. Não há uma só que tenha permanecido imóvel ao longo dos anos, porque toda vez que retornam, o fazem por meio de outras pessoas. No entanto, há sempre um núcleo comum, que amarra determinadas lutas, possibilitando alianças através da história. O feminismo é uma destas ideias, tão antiga, porém tão jovem, tão necessária. Passou por inúmeras transformações, pois todos os tempos precisaram recuperar sua lâmina, à sua maneira. No entanto, uma ideia permanece dando o tom: o que faz de alguém feminista é sua disposição em somar-se às dissidentes do sistema de gênero, transformando em luta o que poderia ser tomado como normal.

June Leaf

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Aurelio
Aurelio
1 ano atrás
Interessante!