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Você já entrou na casa de um deles? É terrível, é como se tivéssemos atravessado um portal para outro mundo. Por todos os lados há quinquilharias inexplicáveis. Eles te acompanham e vão dizendo o motivo pelo qual acumularam todas aquelas coisas. É cada história inacreditável… Você começa a se perguntar onde aquilo vai parar até que percebe o óbvio: não vai parar”

Atualmente, o mundo tem algo em torno de duas mil e quinhentas pessoas com um problema muito específico de acumulação. A mídia não fala muito, porque parece ser uma condição muito rara, mas altamente prejudicial para eles e para a comunidade em que vivem. Os especialistas em saúde mental e social encontraram um nome para esta rara condição: bilionarismo. Trata-se de uma compulsão extrema por acumulação de capital, que vai além de qualquer necessidade.

Para se ter uma ideia, imagine que um grão de arroz equivalha a 100 mil dólares, uma quantia que já é inimaginável para a imensa maioria das pessoas que vivem neste planeta. Um milionário, por sua vez, teria dez grãos ou mais. Agora, o patrimônio de um bilionarista grave, como Elon Musk, corresponderia a 60 sacos de um quilo de arroz, aproximadamente – 60 quilos!

O que é curioso é que estes acumuladores não são considerados enquanto tais. No entanto, se você juntar 60 quilos de papelão em sua garagem ou bilhões de objetos variados em sua casa, será certamente considerado doente. A comunidade vai começar a reclamar do excesso e te denunciar. A diferença de percepção se dá por causa de dois fatores que influenciam a nossa percepção do que é patológico em termos de saúde mental: primeiro, o capital, depois o normal, onde “normal” se caracteriza principalmente como branco, masculino e urbanizado.

Até hoje, boa parte do que percebemos como doença mental esteve vinculado à pobreza. A adicção em álcool, por exemplo, é muito mais reconhecida quando percebida em alguém vivendo em situação de rua, sem emprego e perspectiva de trabalho. Sabemos, no entanto, que o consumo abusivo de álcool não é exclusividade dos mais pobres. O mesmo acontece com tudo aquilo que diverge do que é considerado normal em sua época. Uma pessoa trans, por exemplo, é facilmente tomada por doente em uma sociedade marcada pela binaridade de gênero. Sabemos, no entanto, que é difícil tomar o homem heterocis como referência universal para saúde mental. Outro exemplo seria a comparação entre os rituais cristãos e os rituais de qualquer religião de matriz africana. Mesmo sabendo que a bíblia não é exatamente um guia de bons costumes, sua liturgia é vista como absolutamente natural.

Indo direto ao ponto, a questão que nos interessa é: por que não consideramos doentes os  bilionaristas, acumuladores de capital? Ora, porque vivemos em um mundo que, dados estes critérios, naturalizou a desigualdade como verdade auto evidente, neutralizando nosso olhar para esta grave doença. Nós não enxergamos um super acumulador de capital como uma pessoa doente porque a lente pela qual vemos o mundo considera absolutamente normal que alguém deseje acumular milhões de milhões de dólares, ainda que não consiga jamais gastar essa quantia.

O pior é que o bilionarismo é uma das doenças mais prejudiciais do mundo, porque não se forma um bilhão sem expropriar os recursos alheios. Todo bilionarista é um parasita no trabalho dos outros, tanto na fonte – na carne e no sangue – quanto no lucro – isto é, no valor produzido. Enquanto eles se excitam com números que se movimentam na forma de bits e bytes de bancos digitais, outros morrem de fome.

Às vezes, basta mudar a perspectiva para ver com mais facilidade. Se dinheiro fosse como no passado, medido através de moedas de ouro, os bilionários seriam como os dragões dos filmes de fantasia medieval, que dormem em cima do seu ouro e ficam olhando fascinados para ele, cuspindo fogo em quem chegar perto. Pior, imagine que o padrão de troca fosse feito com Sal. O que veríamos é, dia após dia, sacas e mais sacas de Sal sendo descarregadas em determinada propriedade, até se formarem montanhas imensas de Sal, onde os Salionários poderiam esquiar, descendo suas montanhas particulares.

Um dia, se a configuração monetária do mundo mudar e esta doença for erradicada, as pessoas do futuro terão dificuldade de acreditar que existiram fãs de bilionário. Tal como hoje é difícil imaginar um escravo com um pôster do senhor de engenho em sua parede. A explicação para a existência de tal absurdo está no elevado grau de contágio que a ideia de super riqueza produz: “tenha o que quiser, faça o que quiser, seja o que quiser” são formas de pensamento hospedeiras difundidas por todos os lados! Infelizmente, o bilionarismo contamina mentes, mas a conta bancária dos inúmeros infectados continua a mesma. Não há máscara, nem sabonete que previna tal transmissão. As formas preventivas conhecidas contam com alguns livros, podcasts, documentários entre outros materiais que promovem o pensamento crítico e a consciência de classe.

O bilionarismo é uma grande ameaça, a cada dia são mais dígitos sequestrados. A doença está se espalhando e cada novo bilionarista navega sobre um mar de miseráveis. Precisamos nos organizar para extirpar esta doença da face da terra. Qual ajuda oferecemos? Intervenção e distribuição compulsória! Entrar nas mansões, nos bancos, nas empresas e começar a limpeza. Reduzir, reutilizar e reciclar tudo! Transferir os recursos para os mais necessitados. Transformar a riqueza extrema em uma obscenidade. Infelizmente, a doença já está em estágios muito avançados, por isso não podemos contar com a colaboração dos pacientes. Pior, eles poderão oferecer alguma resistência, farão birra como crianças, tentarão nos manipular com argumentos ultraliberais, mas não se preocupem, no futuro eles vão nos agradecer.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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bia lispector
bia lispector
1 ano atrás

excelente reflexão .. quanto mais eles tem mais querem . A ganancia ,a compulsão . Mas ninguem trata isso como doença . é uma nação doente