O ano é 1998. Dois amigos correm de um lado para o outro na pequena sala do apartamento, pulam por cima do sofá, caindo de joelhos com a guitarra de mentira estendida à multidão imaginária. O sistema de som toca alto, – mais alto do que gostariam os vizinhos, é verdade – mas no volume perfeito para o show de rock do qual participam os amigos com empolgação. Nas tardes após a escola, a cena se repete inúmeras vezes, geralmente em cima do mesmo repertório, composto pelos dois ou três CDs que eles conhecem.
Após muitas e muitas repetições, os shows acabam por parar. Talvez o público já não comparecesse como antes ou, mais provavelmente, os vizinhos se cansaram de pedir para abaixar o som e promoveram suas sanções. Seja como for, a amizade persiste e o plano muda, porque, numa tarde qualquer, eles lembram um antigo gravador portátil de fitas cassete com microfone, guardado desde a primeira infância. Simples, pequeno, vermelho e suficiente. A ideia desponta imediatamente entre os dois amigos: “Vamos fazer um programa de rádio!”. Desta primeira afirmação, sustentada com a maior seriedade, surge entre eles toda uma nova maneira de se relacionar com a música, com a voz, com o outro.
No programa, tudo é digno de ser comentado, bastando o interesse mútuo: “vocês acabaram de ouvir o incrível solo de guitarra de Ace Frehley” ou “a seguir, a melhor banda do mundo!” ou ainda “não percam nossa grande entrevista no próximo programa”. Eles não têm mais do que uma fita, o que faz com que cada novo programa seja gravado por cima do anterior. A vontade de gravar é maior do que a de recordar, tudo está dado no momento mesmo em que o microfone é ligado. Os dois amigos passam semanas descobrindo a potência das próprias vozes, até que, um dia a programação espontaneamente chega ao fim – mal sabiam os amigos que voltariam a gravar mais algumas centenas de vezes no futuro…
“O espaço afetivo, como uma péssima sala de concerto, comporta recantos mortos, em que o som não circula. – O interlocutor perfeito, o amigo, não será o que constrói ao redor de você a maior ressonância possível? A amizade não poderia ser definida como um espaço de sonoridade total?”– Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso
Estamos em 2023, passaram-se 25 anos desde aquela brincadeira, mas o antigo programa de rádio continua existindo, ainda que tenha se modificado um pouco. Talvez a pergunta mais interessante a se fazer hoje seja: o que realmente mudou? Não comentamos mais sobre nossas bandas de rock favoritas, é verdade, mas ainda falamos empolgados dos temas que mais gostamos. Não somos mais crianças, é claro, mas ainda hoje nos chamam de meninos. Não é mais um programa despretensioso, mas ainda adoramos brincar com as possibilidades da gravação. Ou seja, talvez o fundamental esteja naquilo que não mudou – continuamos amigos.
Faz quase 5 anos que voltamos a gravar e no dia de hoje completamos 200 programas. Duzentas vezes que sentamos lado a lado, às vezes acompanhados de outras pessoas, para pensar juntos sobre qualquer tema que correspondesse ao critério do interesse. O que tivemos para oferecer nestas horas e horas de conversas gravadas? A amizade como um espaço de ressonância, como uma relação qualificada em que as ideias são acolhidas e modeladas conjuntamente, tão livres quanto possível do atravessamento de cada um como indivíduo separado, pequeno e mesquinho. Nosso orgulho não resulta de nenhuma descoberta, de nenhum engrandecimento pessoal, mas de ter produzido algo imediatamente plural: uma conversa, isto é, versar juntos.
A possibilidade de diálogo é a parte mais empolgante de gravar um podcast. O encontro, o devir, a possibilidade de realmente pensar em algo, ali, em ato, naquele momento. Dialogar (dia | logos) é relacionar-se por meio da palavra. O que é mais interessante em um programa de rádio é que as ideias se constroem numa triangulação em que participam o assunto, os interlocutores e um público ao mesmo tempo ausente e presente. Não se pode falar qualquer coisa, tampouco coisa nenhuma, é preciso levar em consideração todos os vértices.
Dado este relato, é possível imaginar que nosso podcast poderia ter sido sobre qualquer outro assunto. A depender das contingências, poderíamos ter um programa sobre música, ciência ou futebol, desde que a amizade permanecesse… então, é preciso perguntar, por que a filosofia? Ora, a filosofia é um desdobramento da amizade. Não se faz filosofia sozinho. Não sabemos filosofar sem ligar um para o outro e dizer: “estou embasbacado com essa ideia! o que você acha disso?”
Tanto na nossa história pessoal quanto na própria etimologia, filosofar é se envolver com a comunidade de pensamento propiciada pela amizade para colher dela alguma sabedoria. Acompanhados uns dos outros em relações de amizade, pensamos melhor, agimos melhor, vivemos melhor e é isto que se pode chamar de sabedoria. Nesse sentido, todo pensamento generoso é comunista, no sentido profundo do termo, pois é desejoso de estabelecer vínculos significativos entre pessoas que têm se dedicado a responder às mesmas questões.
Nós tivemos a sorte de um dia ter perguntado um ao outro: “o que vamos fazer juntos?”. A resposta importava menos do que a pergunta, não importava exatamente o quê, posto que fizéssemos juntos. A filosofia é isso – sobre o que iremos conversar hoje? É um campo promissor, onde as perguntas podem continuar ressoando infinitamente, sempre de muitas maneiras diferentes, desde que haja um e o outro.