“O homem cauteloso deve especialmente tomar cuidado quando se trata de semelhanças, pois estas são muito enganosas” – Platão, O Sofista
Plutão (versão romana de Hades, deus grego do mundo dos mortos) foi descoberto em 1930 e reinou como último planeta por 75 anos nos confins do sistema solar, o único descoberto pelos americanos, motivo de grande orgulho pra eles, até que, por fim, em 2005, um décimo planeta foi descoberto. Este novo corpo celeste foi batizado de Éris, antiga deusa da discórdia, nada mais apropriado, porque com a sua chegada iniciou-se uma grande discussão. Como assim, então na verdade são dez planetas no sistema solar? Os astrônomos começaram a discutir se fazia sentido incluir mais um corpo celeste em nossos livros de astronomia.
Na verdade, a história começa bem antes, porque desde o começo do século XIX, com o aumento da potência dos telescópios e do número de astrônomos amadores, a quantidade de “planetas” começou a aumentar dia após dia. O primeiro deles foi Ceres, descoberto, em 1801, pouco antes de Netuno. Bem mais próximo de nós, ele está localizado num Cinturão de Asteroides entre Marte e Júpiter e naquela época foi chamado de oitavo planeta. Muitos estavam extasiados com a descoberta (principalmente astrólogos), mas depois de descobrirem o quanto ele era pequeno (apenas 946 km), além de em sua órbita estarem outros corpos menores, como Palas e Vesta, ele foi classificado simplesmente como meteoro. A mesma coisa aconteceu com Quíron, descoberto em 1977, este localizado entre Saturno e Urano. A história se repetia, outros corpos celestes foram encontrados na mesma órbita e chamados de Centauros, nome que faz referência à criatura mítica que é metade cavalo e metade humana. Um nome apropriado, visto que ninguém sabia exatamente como classificar estes objetos. Na época, Quíron foi considerado o décimo planeta do sistema solar (pois Plutão ainda estava nesta categoria), e até hoje alguns astrólogos ainda falam dele. Então chegou a vez dos objetos transneptunianos, agora ainda mais distantes do Sol. Plutão é um dos maiores objetos da região (talvez por isso tenha disso o primeiro a ser observado), mas por lá também circulam Haumea (2004), Éris (2005), Makemake (2005) e Gonggong (2007) e outros.
Os astrofísicos então se reuniram em 2005 para se perguntar: se Plutão pertence à família dos planetas, seus muitos irmãos no cinturão de Kuiper e em outros lugares deveriam ser considerados planetas também. Esta descoberta iniciou toda uma problemática sobre o que poderia ser definido como um planeta. Afinal, sabemos bem que dizer a mesma palavra não significa ter a mesma definição dela. Não admira Plutão gerar tantos debates e desentendimentos, porque é o melhor exemplo de como é difícil definir as coisas. Para se ter uma ideia, conforme as medições se tornavam mais apuradas, descobriu-se que Plutão era muito menor do que se imaginava, muito mais distante e muito mais frio do que qualquer outra coisa. Inclusive, sete satélites naturais do nosso sistema solar são maiores que Plutão, incluindo a nossa Lua. Ou seja, estes corpos celestes não tem nem mesmo o tamanho de luas, que dirá de gigantes como Saturno e Júpiter! Com estas características humildes, Plutão era mais parecido com um cometa. Além disso, quando se descobriu que sua enorme órbita era compartilhada por outros corpos celestes, as coisas começaram a ficar ainda mais estranhas. Ora, como este penetra veio parar na lista de planetas? Ele era estranho demais para estar lá. Plutão, o ardiloso, queria se passar pelo que não era? Ele era um enganador, um charlatão? Descrever as suas características era a melhor maneira de encontrar uma boa resposta.
Tudo gira em torno de boas definições. E boas definições começam por observar atentamente as características. Primeiro, Plutão está longe, realmente longe, quase seis bilhões de quilômetros, isso é quase 41 vezes mais distante do que a Terra do Sol. Afinal, o quão longe um planeta pode ir? Qual a distância máxima? Até onde ele pode chegar até não poder mais ser considerado um planeta? Segundo, Plutão é pequeno, realmente pequeno. Sua massa é de apenas 0,2% da massa da Terra e cerca de um quinto da massa da Lua. Como pode então ele ser um planeta e a Lua não? Ora, mas aí é óbvio, a Lua gira em torno da Terra e ponto final. Certo, mas a Lua de Plutão, Caronte, é grande a ponto de um praticamente girar em torno do outro, e agora, Caronte é um planeta também? Terceiro, Plutão é lento, muito lento. Como está distante, ele demora 248 anos para dar uma volta em torno do Sol. Quão lento um planeta pode ser? Se ele demorasse mil anos para orbitar o Sol, seria um planeta? E se ele estivesse parado em relação ao sistema solar?
Estamos lidando com a seguinte questão: qual é o limite de uma definição? O que faz com que possamos distinguir um Planeta de seus simulacros? Existem muitos pretendentes a planetas, e o caso de Plutão é muito interessante, porque mostra que há fronteiras onde ainda não se é um nem outro. Este lugar incerto, é para ele que queremos olhar! Nunca se questionou a planetariedade de Júpiter, nem de Saturno. O quão baixo se pode chegar até perder o título de planeta e se torna planetóide? Existe um limite, claro, mas qual? Um quilo a menos, e viramos um planetoide, um a mais e voltamos a ser planeta? Como fazer? É como no velho paradoxo do monte, questão muito discutida desde a Grécia antiga: digamos que a cada dia o nosso planeta perdesse uma tonelada, dia após dia, se tornando menor, perdendo tamanho e gravidade. Em que momento ele se tornaria um planetóide? Qual é o ponto exato? De Meteoro a Planeta Anão, de Planeta Telúrico a Gigante Gasoso, de Anã Marrom a Gigante Vermelha, até chegar em um buraco negro supermassivo, é tudo uma questão de classificação. E se nós definimos, nós podemos mudar as definições.
O paradoxo nos assusta, uma coisa não pode ao mesmo tempo ser e não ser! Ou ela é, ou não é. Esta preocupação é antiga: segundo Parmênides, filósofo pré-socrático, ou o ser é absolutamente ou não-é e nunca pode ser, sem meio termo, e todo o resto é ilusão. Se for assim, Plutão fingia ser um planeta, quando na verdade nunca foi. Mas é fácil perceber que as coisas não são tão simples assim. Toda definição, por melhor que seja, precisa lidar com uma realidade mutável, esguia, maliciosa, difícil de apanhar com o pensamento. Platão, filósofo grego, discípulo mais famoso de Sócrates, conhecia bem o problema da identidade, mas não seguiu o caminho de seus predecessores. Ele disse: “As coisas ao mesmo tempo são e não são”. O Ser e o não-ser estão enredados, são difíceis de separar, classificar e entender. Platão contesta Parmênides afirmando: o não-ser é, ou seja, ele não é o oposto do ser, ele é algo, só que algo diferente. A diferença é, mas é outra coisa, algo que o pensamento não alcançou (ainda). Toda classificação fala do ser, mas sempre deixa algo de fora, que não é um oposto, mas é outra coisa que a definição não dá conta.
Foi exatamente este o raciocínio de Platão para compreender o ardiloso Sofista, que circulava pelas ruas de atenas. Quem é este traficante de informações que vende seus conhecimentos para quem puder pagar? Que é este mestre da retórica que ensina a ganhar discussões independente das circunstâncias? Que sustenta a aparência de Sábio, afirmando dominar tudo sobre todos os assuntos? Seria este um filósofo? Ora, mas o filósofo não cobra por seus conhecimentos, ele conversa em um grupo de amigos procurando pela troca e pela construção em conjunto. Em outras palavras, como o sofista poderia ser um filósofo, se o filósofo é aquele que parte justamente do fato de que nada sabe? Não, impossível, o sofista só pode ser então um não-filósofo, ele é outra coisa, que foge ao pensamento, mas que podemos apanhar se raciocinarmos com calma e atenção. O filósofo é diferente do sábio, que é diferente do sofista, e cada um pede uma boa classificação. O mesmo vale para nosso frio e distante objeto, se ele é um não-planeta, o que ele é então?
Depois de muita discussão, os astrônomos definiram os requisitos básicos para um corpo celeste ser considerado um planeta. Primeiro, ele precisa girar ao redor de uma estrela, qualquer uma, pode ser o nosso Sol, por exemplo. Satélites giram ao redor de outro planeta, então recebem outra classificação. Segundo, ter massa o suficiente para atingir uma forma quase esférica, deste modo, asteroides e cometas, que não possuem gravidade para tanto, ficam de fora. Terceiro, não ter em sua vizinhança nenhum outro corpo celeste que influencie no seu movimento, em outras palavras, precisa dominar gravitacionalmente sua órbita.
Em suma, depois de muita discussão, definiu-se que o último planeta descoberto no nossos sistema solar era Netuno, em 1846, todos os outros corpos celestes depois dele eram outra coisa, com suas próprias características particulares: Plutão, junto a Éris, Ceres, Haumea e Makemake, Sedna e outros foram rebatizados como “planetóide”, ou “planeta anão“. Não são cometas, não são meteoros, não são gigantes gasosos, não são planetas telúricos, e mais importante, não planetas que deram errado, não são o oposto de nada, são algo diferente. Depois de uma boa definição, o não-ser tornou-se ser.
Platão fala que um filósofo procura por boas definições (Ideias? Formas?), e boas definições dizem como as coisas se relacionam umas com as outras. Se A se comporta como B, então não podemos chamá-lo de A, seria hipocrisia, ignorância, ou até mesmo burrice. Os astrônomos também adoram classificar bem as coisas que observam, e foi por isso que eles rebaixaram Plutão à condição de Planeta Anão, para a tristeza de muitos americanos, fizeram isso porque ele se comporta como outra coisa. Depois de tanto esforço, chamá-lo pelo seu antigo nome seria um ato de ma-fé, movido por orgulho ou por falsidade, um ato digno dos Sofistas. Enfim, como nosso querido planetoide leva 248 anos para completar uma órbita, ele perdeu seu posto antes mesmo de dar uma volta ao redor do Sol. Mas não há notícias de que ele tenha ficado triste com seu rebaixamento, na verdade, ele provavelmente nem liga para as definições que recebe dos humanos aqui da Terra, apenas segue em sua tranquila viagem pelo sistema solar. As coisas não querem ser nada, elas apenas são, e pronto. Nós é que temos necessidades de boas definições, isto é importante para nós, porque somos animais frágeis e curiosos que pensam por prazer e necessidade. Por fim, Plutão encontra o tamanho que deveria ter, não apenas na realidade, mas agora também em nossos pensamentos.
Realmente, aquilo que é muitas vezes não muda, nós mudamos e aí temos que correr para mudar nossas classificações. Não é verdade que ao amado de ontem a quem chamávamos de divino e fantástico não passa agora de ordinário, vulgar e horripilante? O que ocorreu? Melhores telescópios!? Melhores filosofias? Novas paixões (no sentido espinosista) pressionam o peito? Ah! A fragilidade humana e a sua sina de jamais ser o mesmo!