Este texto chega tarde, mas este fato talvez sirva para pensar. São dez anos escrevendo sobre filosofia, mas nunca escrevemos sobre temas raciais. Ainda que estas questões tenham surgido em conversas, grupos de estudo, aulas abertas, trazidas por convidados, elas nunca ocuparam o centro motor de tudo o que fazemos, que é a escrita. Por meio deste texto, assumimos a responsabilidade por ter ignorado um assunto tão urgente. O racismo é ao mesmo tempo causa e consequência de uma das maiores violências conhecidas na história humana: o arrastar de corpos que convencionou-se chamar de colonialismo. O passado da raça é difícil de encarar, mas sabemos bem que ele não sumirá, senão ao preço da elaboração de um luto coletivo. A terrível violência da escravidão marcou toda a nossa sociedade, e “não é a tão baixo preço que nos desembaraçaremos dela”, nos lembra Aimé Césaire.
No entanto, somos brancos. O que isso significa? Que para nós a raça só existe como privilégio, ou que nunca experimentamos em nosso corpo a violência exercida pelo delírio racista, infligida como desprezo por tudo o que não se parecia conosco. A consciência sobre a raça, para nós, brancos de hoje, ficou no passado, quando provavelmente nossos antepassados estavam ao lado dos opressores, isso se não fossem os próprios. Nos dias atuais, é possível ser branco e viver toda uma vida sem pensar a raça, ainda que a realidade da grande maioria continue dia após dia sendo marcada pelos seus efeitos nefastos. Não podemos continuar dormindo, vivendo o sonho do opressor, no qual é possível dizer que todos são iguais e continuar usufruindo da dominação dos corpos racializados. Alguns de nós acabaram de acordar, sacudidos pelo canto dos povos em luta e agora querem unir suas vozes para fazer despertar os outros. Como, porém, fazer isso, senão por meio de um cuidadoso processo de reparação? De alguma maneira, é preciso fazer valer alguns dos efeitos negativos da raça, agora contra os brancos, para arrancá-los de seu sono.
Pode o branco participar da luta antirracista? Um bom primeiro passo é começar a sentir o desconforto que até então tem evitado. Antes de mais nada, precisamos tomar parte no sofrimento de séculos, para então começar a pensar o que fazer. É preciso admitir o próprio privilégio, assim como a própria culpa. Não se trata apenas de se dizer antirracista, isso é muito pouco, é preciso antes responsabilizar-se pela própria história para depois poder agir sobre ela. Não podemos esperar mais uma vez das pessoas negras a vanguarda nesse processo de elaboração sobre a branquitude, pois quem precisa sofrê-lo somos nós: o passado da raça precisa pesar sobre os ombros dos brancos também, senão ele permanecerá vago demais para ser combatido. Aquilo que os negros sofrem na pele, os brancos usufruem como privilégio – enquanto a raça se estabelecer dessa maneira, o antirracismo entre os brancos será apenas um pedido hipócrita de desculpas.
Um dos motivos que explica nunca termos escrito sobre racismo é o fato nada banal de que nunca o sofremos. A filosofia, branca e eurocêntrica, que tem nos servido de inspiração, tampouco nos levou a pensá-lo. O que de fato nos fez pensar sobre isso foi o encontro reiterado com pessoas que realmente sofrem do racismo e fazem disso o mote para a luta e para o pensamento. No entanto, isso ainda está muito longe de ser o suficiente: a influência externa só nos levará até certo ponto. Este texto mesmo não repara nada, apenas chama atenção para a nossa própria responsabilidade na manutenção dos pactos racistas. Porém, falar disso em nome próprio é um passo tímido na direção de uma ideia de mundo em que raça não signifique exploração. Perceber o acordo tácito que se tem com o racismo é apenas o começo de um longo exame crítico, que certamente nos levará a um lugar mais interessante.
Por mais controversa que essa ideia pareça, a raça não existe, senão nos seus efeitos. Ou seja, o que de fato existe é o racismo. O que se chama raça é apenas um delírio organizado em função de um paradigma de sujeição indispensável ao capital – é o que aprendemos com autores como Achille Mbembe e Frantz Fanon. Por causa dessa existência espectral, a raça pode modular segundo o corpo na qual se impõe: para uns, pesa como o trabalho e a morte; para outros, simplesmente não existe. Assim, aquele que é considerado branco pode viver sem a experiência da raça, enquanto tudo que se diferencia dele não pode escapar do enquadro racial. É exatamente isso que precisa mudar. Bom seria se pudéssemos simplesmente fazer uma tábula rasa. No entanto, o delírio racial está em estágio muito avançado, ele estrutura demais as relações de trabalho, sociedade e cultura, para que o problema possa ser resolvido simplesmente pelo discurso da igualdade. Não, o caminho que faz dos brancos aliados do antirracismo começa por constrangê-los a lembrar do passado, para então poder intervir no presente.
É apenas encarando o opressor que olha de volta no espelho que podemos mandá-lo à merda – comecemos por isso. Sabemos, é claro, que não se trata de uma luta individual, que o sentimento de culpa não adianta de nada. No entanto, quando falamos sobre pensar a raça enquanto brancos, falamos de atribuir-nos a responsabilidade de estar diretamente envolvidos na devastação de mundos que aconteceu há tão pouco tempo. Não se trata de apontar a culpa, mas de trazer à consciência. Quando essa ideia surgir com o peso que possui enquanto afeto, então poderemos fazer algo de verdadeiro pelo antirracismo. Apenas quando sentirmos a urgência na pele, poderemos começar a somar realmente às lutas. Por enquanto, a maioria de nós dorme, mas nós já não queremos mais participar de seu sono.
Lhes acompanho há muito tempo, seja no podcast ou nos textos do site. Creio que esse texto é importante, embora eu o leia com certo “desprezo”, pois, como disseste, não houve em todos esses anos algo sobre raça escrito por vocês. Lhes escrevo do meu trabalho. E vim caminhando como faço todos os dias lhes escutando enquanto admirava as belas esculturas dos òrìsà, a lagoa e os lindos jardins do Dique do Tororó. Sim, esse “filósofo ingênuo” que lhes escreve vive em Salvador, cresceu em um bairro da classe trabalhadora, é de origem operária e é um homem afrodescendente. Quando… Ler mais >
Parabéns por esta pg. Linda de ver. Deliciosa de se ler.
Luz pela coragem em ‘O Passadobda Raça’. Q se possa ir além!