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Este texto foi escrito com pressa. Espremido ao fim de um dia de trabalho, depois de cumpridas as demais urgências. Enquanto o escrevíamos, pensávamos: “nossa, seria tão bom ter mais tempo para escrever”. Temos certeza de que não somos os únicos com esse tipo de lamento. Uns aos outros, reclamamos o tempo todo do nada de tempo que sobra. Por ser tão frequentemente enunciado, podemos dizer que esse sentimento de não ter tempo deixou de ser individual e se tornou um sintoma psicossocial – a fantasia coletiva com um dia de trinta horas o denuncia. Que condição é essa que nos torna reféns do nosso próprio tempo?

A sensação de falta de tempo é uma estranha contradição, afinal, a condição de estar vivo é a de estar no tempo. Se é assim, então o melhor é começar a pensar a partir da ideia de que há tempo suficiente. É apenas por meio dessa inversão que colocamos as coisas no devido lugar e percebemos que, na realidade, o tempo falta porque nos é roubado. Sim, o primeiro traço do diagnóstico surge da maneira como nosso modo de produção está organizado. A criação da escassez é inerente ao capitalismo. Onde há capital, há alguma espécie de roubo. Todo enriquecimento depende da desvalorização do tempo de alguém. Isso está perfeitamente simbolizado na forma do lucro, que é composto majoritariamente de tempo de trabalho não pago. Sendo assim, precisamos lidar com o fato incômodo de que o tempo nos falta porque trabalhamos mais do que precisamos, e pelo simples fato de que a maior parte do valor que produzimos não nos retorna. Seguindo o mesmo raciocínio, podemos dizer que o salário é a precária materialização de um modo de produção que nos rouba tempo de vida.

Além disso, existem outras formas de expropriação tão tristes quanto a mais-valia, mas muito mais sutis. Afinal, o modo de produção capitalista está apoiado sobre diversas formas de trabalho que não são percebidas enquanto tais. Por exemplo, o trabalho “doméstico”, que Silvia Federici chama pelo nome correto de trabalho reprodutivo. Acaso se pode produzir qualquer coisa sem que alguém tenha limpado, cozinhado, organizado, cuidado da casa e amparado os filhos? Claro que não, e o pior é que até hoje a imensa parte deste trabalho não pago é feito apenas pelas mulheres – o que explica que o sentimento de falta de tempo seja muito mais agudo entre elas. Imagine trabalhar tanto fora quanto dentro de casa, tendo uma parte do dinheiro roubada e a outra sequer paga. Qual é o tempo que resta?

Como se não fosse o suficiente, há ainda uma terceira forma de trabalho que nos toma bastante tempo: o consumo. Parece estranho? Então pare para perceber quanto do nosso tempo é preenchido por coisas que geram dinheiro para os outros. Nosso tempo é sorrateiramente tomado das nossas mãos e transformado em capital através de anúncios na TV, nas plataformas de vídeos,  nas redes sociais, entre várias outras formas de apropriação capitalista do tempo livre. Aliás, a moda mais atual no marketing é justamente a de transformar a publicidade em conteúdo, escondendo do consumidor o fato de que aquilo que ele vê se trata de uma propaganda. Nos irritamos menos com a invasão das marcas quando elas são despretensiosamente citadas pelos nossos influencers favoritos: um truque de ilusão que nos toma tempo na economia da atenção.

Estes três fatores somados nos submetem à condição de seres multitarefa, que tentam dobrar o tempo em dois para assim aproveitá-lo melhor: o audiolivro que se ouve no trânsito, a rede social que se consulta no banheiro e, claro, o podcast que se ouve enquanto lava a louça. Não que estes sejam problemas em si mesmos, mas eles denotam um esforço que parece não aceder às causas que romperiam com a própria sensação de falta de tempo. Não há problema em trazer mais interesse para uma tarefa mecânica inevitável, como o transporte ou a faxina,  por meio de pareamento de interesses, a questão não é essa. O que interessa é pensar se existem caminhos que nos permitam acessar um tempo diferente, mais vivo, e assim reverter a condição de seres marcados pelo ritmo da produção, reprodução e consumo.

Este tempo vivo, como o chamamos aqui, possui outra cadência, passa em ritmos alheios à marcha do capital. Ele se demora naquilo que supostamente não deveria (uma flor que desabrocha) e também passa com mais velocidade por aquilo que não importa (uma reunião que poderia ter sido um email). Existe um tempo que flui por baixo das estruturas que estão colocadas, que foi canalizado por baixo do concreto das cidades, mas continua lá, fazendo pressão. Foi Immanuel Kant quem disse que o tempo é um a priori da nossa subjetividade, isto é, ele não existe por si próprio, mas como medida do pensamento. Ou seja, onde quer que precisemos pensar, lá estará  o tempo a estruturar o raciocínio. 

O que acontece quando uma sociedade regida por valores industriais e financeiros começa a pautar o nosso pensamento? Ora, o sentimento do tempo acaba variando junto com a gente. Assim, entramos em um círculo vicioso: se nos retiram o tempo, nos retiram também uma determinada maneira de pensar.  Isso talvez explique – de maneira tragicômica, é verdade – a relação entre o tempo curto e o pensamento raso. Chegamos a uma estranha conclusão: as pessoas não pensam porque não têm tempo e não têm tempo porque não pensam. Essa circularidade parece não apresentar saídas, mas se voltarmos à definição kantiana perceberemos o seguinte: há no pensamento a possibilidade de um outro tempo!

A inscrição dos traços capitalistas na formação da nossa subjetividade alterou a maneira como percebemos o tempo, nos fez ter medo do ócio e nos tornou impacientes para a dúvida. Confundimos o ócio com o tédio e nos sentimos mal, porque a quebra do ritmo normal de trabalho nos faz encarar a nossa própria precariedade. Já a dúvida nos deixa ansiosos, porque interrompe o fluxo organizado do pensamento, nos obrigando a demorar em coisas pequenas. E assim, mais uma vez, vemos a filosofia surgir como forma extemporânea de combate, porque se apoia nestas duas formas improdutivas, reinventando o tempo no seu processo. Talvez os filósofos antigos estivessem certos: um tempo mais vivo se faz no pensamento a partir da mistura do ócio com a dúvida.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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