Conta-se que Tales de Mileto, considerado um dos primeiros filósofos, num certo dia, enquanto voltava para casa, olhava para o céu, admirando o brilho elegante das estrelas. Enquanto contemplava a estonteante beleza, não percebeu um buraco à sua frente e caiu. As pessoas que o acompanhavam começaram a rir, claro, nada mais natural. No entanto, é de se notar a diferença entre o riso de escárnio de quem se prende no cotidiano e o sorriso de admiração daquele que se perde por olhar demais para as estrelas.
A filosofia, diziam Platão e, logo em seguida Aristóteles, nasce com o espanto. Alguma coisa diferente acontece, nos tira do lugar e suspende o movimento cotidiano. A partir deste momento, o filósofo é aquele que quer – e pode – se envolver com este mundo novo que se abre conforme ele se debruça sobre as coisas que o espantam. Diferente do ser banal, que não deixa que nada perturbe sua rotina, o filósofo para e se demora em admiração. Admirar significa muito simplesmente “olhar para”. Como pode um gesto tão singelo e despretensioso abrir tamanhas veredas no pensamento? Ele se espanta e logo em seguida se pergunta: “o que é isso?”, e se deixa levar por um um estado de hipnose, obsessão, fascinação. Talvez seja possível medir a grandeza de uma filosofia pela frequência que nos leva a este estado de fascinação.
O filósofo é aquele que precisa olhar mais uma vez, que precisa continuar observando, como Tales admirando as estrelas. O bebê filosofa quando observa tudo atentamente; a criança filosofa quando pergunta o porquê de todas as coisas; o adolescente filosofa quando questiona todas as respostas prontas; o velho filosofa quando se pergunta por que viveu a vida que viveu. Apenas o adulto não filosofa, ele está nesse limbo em que pensa conhecer o mundo, quando na verdade apenas se habituou com ele. O adulto prefere atender aos seus compromissos a tempo do que se atrasar com perguntas estranhas e por isso não compreende a filosofia: para ele, o pensamento filosófico é um engarrafamento atrapalhando o caminho para o trabalho.
Admirar-se é abrir novos mundos, e muitos de nós perderam a capacidade de fazer isso. Para que a filosofia exista, é necessário esse olhar que ralenta, que faz o pensamento divagar, que ensina a apreciar o ritmo em que as respostas e dúvidas se intercalam – de novo, de novo, e de novo. É por meio dessa admiração, de quem habita muito tempo um lugar, um objeto, uma pessoa, uma situação, que passamos a compreender. Foi provavelmente isto o que aconteceu com os primeiros astrônomos: sentados todas as noites em torno da fogueira por muitos anos, olhando atentamente para o céu, começarem a perceber que certos movimentos se repetiam com alguma coerência. Na demora, o olhar se qualifica em admiração e o simples observar se enriquece na forma de um sentimento.
A admiração é o prenúncio da compreensão. A partir dela, o entendimento se entrelaça em harmonia com o objeto, da mesma maneira como nos encantamos com a leveza da melodia de uma música, com as proporções simétricas de um quadro, com a grandeza de uma cadeia de montanhas, com o equilíbrio de sabores em um prato de comida, com a elegância nas roupas alguém. O conhecimento nasce da admiração, quando o entendimento começa a encontrar os fundamentos e o funcionamento do mundo ao seu redor. Como recompensa, sentimos um profundo prazer, porque, por um instante, somos um com o todo.
Mas como toda luz também faz sombra, parece existir um outro sentimento escondido neste gesto. Nas entranhas da admiração, quanto mais o mundo se abre ao nosso entendimento, mais aparece um certo desconforto. O olhar sempre traz mais do que é possível de se ver, fazendo o universo se abrir para algo maior do que o entendimento é capaz de compreender. O intelecto, seduzido pelo canto das sereias, acaba caindo em um abismo. Foi isso que aconteceu com Tales, tanto olhou para as estrelas que caiu em um buraco.
A sensação de estranhamento parece rasgar o sentimento de admiração, porque a observação das coisas leva nossas faculdades ao limite do que são capazes de compreender racionalmente. Quando este limite é ultrapassado, somos levados à contradição de saber e não saber ao mesmo tempo: esta é a estranha condição em que todos nós vivemos e da qual o filósofo extrai o material para pensar. O sentimento de admiração, tão nobre e estável, abriga em si a experiência de que o mundo é muito maior do que poderíamos imaginar, obrigando o entendimento a dobrar-se ao infinito.
Assim, o espanto retorna como gêmeo inseparável da admiração, porque não há anterioridade entre saber e não saber, há sempre concomitância. Passar a compreender não deixa ser também a compreensão do quanto não se sabe. Conhecer um pouco mais do mundo é percebê-lo ainda maior e mais misterioso. As respostas só são possíveis numa relação bem estreita com as perguntas, qualquer desvio nos leva novamente para o buraco. Existem determinadas maneiras de pensar que preferem evitar essas armadilhas, mas este não é o caso da filosofia. Cair no buraco desperta o filósofo do transe a que foi levado pelo conhecimento, permitindo que ele se sinta novamente impelido a perguntar.
O filósofo, com sua lentidão característica, conhece bem estes dois estados: o eureka, de Arquimedes, onde parece que as peças finalmente se encaixam; e o absurdo, onde a razão é humilhada pela grandeza do universo. A filosofia se faz nestes cumes e vales, onde o pensamento transita aos tropeços. Quem quiser fazer filosofia precisa conviver estes sentimentos ambíguos, andar no fio da navalha, no estreito espaço entre a admiração do que se é capaz de apreender e o espanto com o insondável presente em um grão de poeira. Não enganem, porém: para o filósofo, sondar o infinito é mais um orgulho do que uma humilhação. Afinal, é uma honra sentar-se junto aos deuses, e aprumar os ouvidos, enquanto eles sussurram entre si os seus segredos.
Sensacional..Obrigado.
Excelente Rafael! Bem abrangente, envolvente e inspirador!
Lindo.
Elucidativo, a cada leitura uma descoberta !