Ao dizer uma palavra, o que fazemos é embalar o pensamento em um invólucro sonoro composto por: vogais, como a e i ó u, sons abertos contínuos soprados por entre diferentes maneiras de dispor o palato e a boca; e consoantes, como c t p b, golpes de língua e lábios que cortam o ar como se tratasse de dar forma a um tecido. Quando escrevemos uma palavra, representamos o pensamento por meio de um complexo rabisco de pontos, linhas retas e curvas, pressionando um bastão de grafite pontiagudo sobre uma superfície plana feita à base de tecidos vegetais. Combinadas com a cerimônia gestual dos espasmos musculares ou com o vestuário textual das vírgulas, as palavras partem numa viagem analógica, atravessando em suas garrafas o oceano que nos separa uns dos outros.
A analogia é a natureza da palavra. O processo de dizer alguma coisa não é banal como parece, porque a palavra não é a coisa, a palavra é a imagem da coisa. Assim, toda comunicação verbal é analógica, porque não somos capazes de colocar as partes diretamente em contato. Para nos comunicar dependemos sempre de algum veículo que faça o transporte, levando de um lado para o outro aquilo que gostaríamos de dizer. A frase é um caminhão carregando pacotes de impressões que vão de interjeições a advérbios, passando por verbos, pronomes e conjunções – uma grande variedade de recursos para facilitar a transposição. Seja como for, o conteúdo costuma ser frágil. A depender do condutor e do trajeto, ele se quebra em pedaços difíceis de se reconstruir no destino. Então, qual será a melhor maneira de se comunicar? A linguagem deve ser reta como uma bula de remédio ou sinuosa como uma poesia?
Para as perguntas difíceis, podemos sempre apelar para a resposta universal: depende. Apesar de não dizer muita coisa, aqui essa resposta enfatiza o caráter situacional da linguagem. Sabemos bem que declamar um soneto não é a maneira mais eficiente de se pedir uma pizza (“Oh, pizzaiolo, artista das redondas / Espalha o molho, a mussarela a fluir, / Sobre a massa que, ao forno, responda, / E ao fogo, tua magia a exaurir.”), assim como responder uma carta de amor com duas palavras (“eu tb”) talvez não seja o melhor jeito de manter o encanto da relação. Ou seja, o enunciador escolhe o veículo de acordo com o conteúdo que quer entregar ao interlocutor. O dizer direto e reto dificilmente daria conta de levar ao outro o tom cerúleo do céu que se observou certa tarde, mas uma reflexão filosófica talvez o faça. Por outro lado, o grande esmero na escolha das palavras não seria capaz de avisar alguém a tempo de evitar o choque iminente com o poste, quando um mero “cuidaaado!” o faria tão bem.
Na linguagem convivem o medíocre e o sublime, cada um à sua maneira. Para que sejam compreendidas, há coisas que dependem da pura reprodução de um jeito plenamente conhecido de dizer, e há coisas para as quais não existem ainda as palavras para dizê-las. De um lado, está a comunicação que rebaixa o singular ao banal, nivelando o comum por baixo, para estreitar a compreensão; de outro, está a comunicação que inventa uma unidade à qual elevar o múltiplo, apostando na articulação das diferenças em uma comunidade de sentido. No primeiro caso, o conteúdo se torna comum através de um aplainamento da linguagem, amarra-se bem o pacote para que ele não se mova ao longo do percurso. Agora, no segundo caso, a ideia é colocada em movimento e vai balançando até chegar no destinatário, que precisa se envolver com a mensagem para bem compreendê-la.
Quanto mais aberto ao mundo, mais o pensamento exige da linguagem. Comunicar uma experiência apurada na forma de um conceito é a experiência sempre recomeçada da filosofia, que bagunça o tráfego comunicativo, ignorando a organização prévia da linguagem. Ao que parece, no curso das palavras o pensamento só acontece quando vislumbra a terceira margem do rio. A poesia também não é apenas um divertido joguete de sílabas, é mais, é uma tentativa ousada de expressar a grandeza através do delicado contorno das letras. O filósofo, o poeta, entre outros heréticos da linguagem, conhecem bem a natureza pragmática da comunicação, mas teimam em dizer que há mais vida nas palavras do que somos capazes de ver de antemão. Há coisas grandes demais para caber nesses pequenos invólucros, o que não significa que seja vão o esforço por dizê-las.
Envolver-se com o mundo por meio da linguagem é perguntar-se com certa frequência: como colocar em palavras? A depender do assunto, da situação, da relação, nos sentimos mais ou menos confiantes na nossa capacidade de traduzir o evento na linguagem. Às vezes, quando as condições são favoráveis, uma simples frase resume tanta coisa, mas há também aqueles momentos em que falar e ser compreendido parecem exigir um pequeno milagre, porque não importa o quanto se tente, nada parece exprimir direito a questão. Talvez seja por causa dessa ambivalência linguística que, no contexto amoroso, a expressão “eu te amo” seja tão temida: é uma declaração que comprime a mais estranha das disposições afetivas em uma fórmula pronta. É o tipo de frase que pousa arriscadamente sobre a linha tênue, que separa aquilo que se consegue dizer daquilo que raramente se consegue colocar em palavras. Destacada de sua ocasião, não se pode julgar a eficácia da expressão, mas sabemos que o poeta preferiria desviar, o romancista preferiria adiar, o cineasta o olhar, o filósofo o pensar e o amante – ah, o amante também não sabe como colocar em palavras, mas tenta mesmo assim.
Parabéns pelo seu texto sobre a linguagem, Lauro. Ele resumiu as minhas principais preocupações em relação à expressão do pensamento e sentimentos. Vou ler os seus trabalhos para me inspirar nos meus futuros textos. Abraços.
Que bom que fez sentido pra você, Luzimar!
Obrigado pelo comentário 🙂
… a mando escre vendo e não pode ndo diz er nem es cre ver po is, tu do es tá sen do e dei xa ndo de ser…
Maravilhoso