“E disse Deus a Moisés: ‘Eu Sou o que Sou’” – Êxodo 3,14
Depois que Deus se revelou para libertar os judeus do Egito, Moisés perguntou seu nome, ao que seu salvador respondeu simplesmente: Eu sou. Este é o significado de Javé (Yahveh) ou Jeová (Yehovah): eu sou, ou eu existo, ou até mesmo, eu sou aquele pelo qual tudo existe. Esta é a maneira como Moisés compreendeu Deus. Mas por que a divindade suprema, salvadora, se recusou a aparecer para Moisés, afinal por que ele escolheu aparecer na forma de uma sarça ardente? Será que o profeta não era digno de contemplar seu Salvador? Será que ele não merecia a visão de seu Deus? Ou será que ele morreria ao contemplar sua forma verdadeira, assim como Sêmele ao vislumbrar a forma divina de Zeus?
Todas estas questões fazem parte de uma longa discussão teológica. Os Deuses nunca se revelam completamente, nunca aparecem em sua pureza, eles precisam ser mediados por formas, mitos, disfarces, aparências. Pois bem, esta mesma discussão faz parte da filosofia antiga no tema da natureza. Um fragmento de Heráclito, um pré-socrático de enorme importância, diz assim: “a natureza ama ocultar-se”. Do mesmo modo que Deus não diz seu nome, a natureza também se esconde, mas esta o faz atrás de si mesma.
Enquanto os piedosos pregavam o respeito e tinham medo de encarar os Deuses, aqueles que olhavam para a natureza abriam caminhos diferentes. Se a natureza se esconde, como podemos fazê-la se revelar? De um lado está a razão tecnicista, torcendo a natureza contra a sua vontade, do outro lado está a atitude respeitosa e contemplativa, sustentada pela estética, que admira a beleza da natureza não ousando forçá-la a mais nada. Aqui a teologia, a filosofia e a ciência cruzam suas fronteiras a tal ponto que começam a se confundir.
Encontramos misturados em um mesmo ímpeto de compreensão e terror, os seguidores de Javé, e os indagadores da Natureza, e percebemos uma atitude que oscila entre a veneração e a cobiça, o respeito e a volúpia. Afinal, será que deveríamos temer o que foi escondido a sete chaves? Ou deveríamos nos tornar ardilosos o bastante para abrir estas fechaduras na calada da noite? Não deveríamos respeitar o pudor com que a natureza se mostra? Não deveríamos temer o que Deus nos proibiu de saber?
No meio desta discussão milenar chegamos a Espinosa, o filósofo holandês nascido em plena revolução científica e criado dentro dos ensinamentos da religião judaica. Este marrano da razão deifica a natureza a ponto de torná-la indistinguível de Deus. Ou seja, pensar a natureza, para Espinosa, é pensar Deus. Tanto faz o nome, trata-se da mesma força que se efetiva sempre ao máximo, uma potência infinita que cria tudo à sua volta, pela absoluta necessidade de si mesma.
E nós somos parte desta expressão divina. Enquanto Deus é o todo, nós somos apenas uma parte dele. Da substância eterna e criadora nós somos modos, modalidades efêmeras dentro da eternidade divina. Espinosa sabe que o finito é nada perto da infinitude de Deus, ou seja que jamais conseguiríamos compreendê-lo por completo. Mesmo que ele se mostre o tempo todo, sempre ficaria algo de fora, simplesmente porque nós não temos compreensão o bastante para vê-Lo por inteiro.
Mas há uma diferença aqui: Deus, ou a Natureza, não se expressa de maneira caprichosa e volúvel, Ele é Logos, Razão, Determinação. Com esta definição, Espinosa tira um coelho da cartola! Nós somos capazes de compreender, porque Deus não está afastado de nós, ao contrário, nós fazemos parte do que ele é e podemos usar do intelecto para compreendê-Lo. Reviravolta inesperada, ao deificar a natureza e naturalizar Deus, o filósofo coloca a transcendência divina em cheque. Não, não podemos compreender Deus em toda a sua magnitude, mas, pelo fato de sermos constituídos Dele, somos capazes de ampliar nossa participação em seus assuntos.
Ou seja, enquanto os místicos falavam de outro mundos, colocando Deus em outra existência, e os físicos materialistas mergulhavam neste universo, negando sua existência, Espinosa viu razões para misturar os dois: se encantar com este mundo e tratá-lo de maneira sagrada, pois Deus se manifestava racionalmente em cada um dos seus quatro cantos. Através da Razão, relações que compreendemos como necessárias e determinadas, nós entrevemos um processo maior acontecendo. “É Deus”, diria o filósofo holandês, “é o infinito encarnado na finitude”.
Com o Racionalismo Místico de Espinosa, nós não apenas estamos, mas nos sentimos mais próximos de Deus. Mesmo que a natureza, com esta rica variedade de formas que chega até nós, ao mesmo tempo em que se mostra, pareça também esconder algo de sua essência. Ou seja, há um segredo que Deus não nos revela. Como alcançar esta verdade suprema? Impossível! Falamos de Deus com as palavras que temos à nossa disposição, tentando iluminá-lo, mas somos finitos e limitados. No entanto, embriagados pela intuição, podemos entrever suas formas para além daquilo que podemos ver. A intuição alcança também aquilo que a Razão não pode alcançar. Não com palavras, mas com sensações. Desvela-se o divino na constituição da natureza. Intuímos a plenitude de Deus pelas revelações que ele nos oferece.
Conquistamos então a eternidade prometida ao profeta? Não, o contrário talvez seja muito mais fácil – e muito melhor – de alcançar: encontrar a eternidade nas coisas finitas. É isso que a intuição faz! Ela aprende a ver a eternidade de Deus no tempo efêmero e limitado que nos é reservado. A verdade, para nós, só se desenrola sob a forma do espaço e do tempo, mas podemos experimentá-la aqui e agora.
Experimentar esta sensação dilaceradora e retornar são e salvo, foi isso que Espinosa fez. Nosso marrano da razão encontrou um jeito de mergulhar no infinito, ouvir Deus, e depois regressar. Mas ao descer dos cumes do pensamento, ele não trouxe tábuas com mandamentos, trouxe algo muito mais valioso, uma Ética. Ele percebeu que Deus, ao se revelar, dizia seu verdadeiro nome, bastava ouvirmos com atenção: ele é o que é, e aquilo pelo qual tudo vem a ser. E mesmo que apenas Ele possa compreender por completo seus próprios segredos, nós, com a ajuda de boas lentes, podemos ver mais longe, lentes que Espinosa poliu com tanto esmero e nos deixou de presente.