Já perceberam como todos os sinônimos de cuidado são interessantes? Ele pode significar uma atenção especial que damos a algo, como quando preparamos um prato especial e separamos todos os ingredientes; também significa a gentileza para com os outros, no trato com pessoas importantes para nós, ou quando conversarmos com alguém que admiramos; cuidado é também a responsabilidade que assumimos, ao alimentar um cachorro, ao olhar as crianças na piscina, ou mesmo regar as plantas em um apartamento quanto seu dono está ausente; esta palavra pode significar o capricho e esmero com que nos dedicamos a algo, cuidamos do vestido da noiva no dia do casamento, o luthier cuida da madeira que se tornará um instrumento musical; e, por fim, cuidado também significa a ideia de planejamento e propósito, quando dizemos que alguém já está combinando ou articulando algo.
Há ainda um outro sentido, agora exterior, quando lemos em uma placa com a palavra CUIDADO em letras maiúsculas e uma imagem de uma caveira, sabemos o significado, há perigo por lá, possibilidade de dor, sofrimento, até mesmo morte. A palavra cuidado exige de nós uma atenção redobrada, vem como um aviso ou uma ameaça da qual precisamos nos prevenir, é um momento de tensão pelo qual passamos.
Disse Vinícius de Moraes em seu samba da bênção: “Cuidado, companheiro, a vida é pra valer”, e acertou em cheio, porque este alerta vale muito para nós. Viver é uma aventura que exige cuidado, viver é viajar, mas viajar sempre implica o risco de perder-se, e se isso acontece, quem cuidará de nós? Onde este cuidado poderá ser encontrado? Afinal, sabemos cada vez melhor que o Universo não está preocupado com a nossa existência. Aliás, um enorme alerta de cuidado deveria ser colocado acima e abaixo de nossas cabeças, “Alerta vermelho, não subir nem descer mais de 2.300 metros, altamente perigoso”. Seja por raios solares ultravioleta de um lado ou magma ardente do outro, estamos o tempo todo à mercê de um universo infinito que não está nem aí para nossa existência.
Em outras palavras, por mais que o céu estrelado seja admirável, ele exige respeito. Ele não pede nada de nós, mas também não promete nada, em suma, é absolutamente indiferente à nossa existência ou nossas atitudes. Não é estranho pensar que o belo firmamento pode nos destruir a qualquer momento? O Cosmos não tem interesse neste minúsculo grão de poeira na periferia da Via-Láctea. Certo, mas acontece que neste planeta vive um animal chamado ser humano, e para ele, uma galáxia inteira vale menos que este pálido ponto azul.
No fim das contas, quando falamos do cuidado, esta palavra tão importante, estamos falamos de valores. E por isso a necessidade recai sobre nós. Este ponto se torna crucial: até onde sabemos, estamos sozinhos no universo, mas estamos juntos aqui na Terra. Ou seja, não podemos contar com mais ninguém além de nós mesmos. Nosso encontro com o mundo não é uma epopeia solitária, pelo contrário, ele só acontece quando nos articularmos uns com os outros. E vejam, não apelamos para Deus, nem para a razão ou qualquer outra entidade superior, não há um ponto fixo. Nossa aposta no cuidado é um alerta, precisamos ter atenção no caminho, não podemos faltar com a responsabilidade uns para com os outros. Cuidado é solicitude, dedicação e compromisso, é um apropriar-se profundo desta condição de sermos sozinhos no mundo, mas unidos na terra.
A Verdade agora se tornou mais simples e se mostra de maneira bem mais óbvia: só somos em meio ao cuidado. Não existia ser humano sem ele. desde o seu sentido mais imediato, do cuidado de uma mãe com sua filha recém nascida, e portanto indefesa, passando pelo aumento das potencialidades enquando cresce, e chegando até o sentido da vida, que abrange a existência como um todo. Ou seja, o cuidado faz surgir o novo, sustenta o crescimento e traz propósito.
Além disso, esta conduta pressupõe uma edificação conjunta. Pensem na construção de um foguete, por exemplo. Como ele voa tão alto? Por que não explode? Como o astronauta não morre lá em cima? Em uma única palavra: cuidado. Todos os fios que se conectam, todas as placa de aço que se unem, todas as manobras delicadas e arriscadas são ações finamente planejadas e calculadas. Responsabilizar-se pelo voo de um foguete é comprometer-se com um dedicar uma atenção extrema, sustentadas em possibilidades mínimas do começo ao fim.
É muito provável que o astrônomo Carl Sagan nunca tenha lido o filósofo Martin Heidegger, mas também chamou a atenção para o cuidado que devíamos ter com o nosso pálido ponto azul. Ele é tão frágil e minúsculo, definitivamente precisa de alguém olhando por ele. Lidar com a poluição dos rios demanda trabalho, a obrigação de preservar as florestas exige dedicação contínua, a violência, a guerra, animais entrando em extinção, tudo isso solicita com urgência nossa atenção consideração. Nossa nova tarefa é a vida sustentar a Vida, permitir que ela aconteça. Depois da morte de Deus nos sentimos eternamente responsáveis por nós mesmos e pelo nosso entorno. O cuidado é a vontade de deixar a porta da vida aberta, sustentar esta abertura, impedir que ela se feche.
Simplesmente acordamos um dia com a vida em movimento, como um carro andando sem direção pela estrada, sem ninguém no volante. Podemos deixar as coisas acontecerem e ver onde vai dar, mas podemos assumir a direção, caso ele esteja indo (e está indo) para um penhasco. A vida sempre nasce constrangida, ameaçada, ela precisa de cuidado. Nós somos a vida ainda acontecendo, nós somos a abertura ainda se abrindo, estamos sempre imersos nesta dinâmica.
Ora, mas por que continuar vivendo se o universo não está nem aí para nós? Simplesmente porque os motivos surgem com o fato de existirmos! Não há um sentido intrínseco para o mundo, mas somos capazes de inventar. Cuidar também é isso, é dar sentido, é trazer para perto e encontrar uma maneira de se relacionar. O cuidado é a forma mais elevada de ser com o outro, e abrange os sentimentos de amizade, amor, responsabilidade, afeição, sustentação, atenção e carinho.
Outra coisa se torna nítida com a noção de cuidado, ele é necessário para as coisas frágeis. E nós somos frágeis. Aqui aparecem duas verdades fundamentais, uma física e a outra moral: equilibramos a mais absoluta indiferença do universo com o mais atento senso de cuidado. Desse esforço em balancear essas dimensões inversamente proporcionais, talvez possa surgir uma autêntica Ética Astronômica. Somos pequenas flutuações no nada, apenas um pálido ponto azul flutuando num efêmero raio de luz. Isso é frágil, muito frágil, cuidemos então.
Referências
Ser e Tempo – Heidegger
Introdução à Filosofia – Heidegger
Vídeo Pálido Ponto Azul – Carl Sagan
Cosmos – Carl Sagan
Filosofia do Cuidado – Boris Groys