Existem muitos mundos dentro do mundo. As mais diversas formas de pensar coexistem e resultam em um contínuo conflito, que vai das discussões de relação aos países em guerra; e nós vivemos nesse lugar confuso em que todas as placas dizem levar para o lugar certo, ainda que apontem para direções opostas. Estamos perdidos, mas este ainda não é o verdadeiro problema. O que é mais grave é que algumas pessoas realmente acreditam que encontraram o caminho correto, e agora empreendem suas forças em nos convencer de que ele é o único.
Neste momento de crença inabalável, o pensamento se torna algo muito diferente: rejeitando de si mesmo a maior parte, ele se torna uma arma. As dúvidas, as perspectivas, as localidades são deixadas de lado em prol de uma objetividade obtusa. Um modo de pensar que se fecha sobre si mesmo é uma das coisas mais úteis para a vida prática, mas é também o começo de toda a violência, e ideias passam a ser lançadas como tijolos.
Todos nós procuramos certezas, claro, precisamos de algumas delas, mas em sua busca muitas vezes perdemos a capacidade de olhar para as coisas de outras maneiras. Então, para justificar uma determinada vida, acabamos por rebaixar tudo o que não se parece com ela. Os mais perigosos dentre nós são aqueles que perderam contato com a legitimidade intrínseca da alteridade, isto é, aqueles que não conseguem mais perceber no outros a genuína alegria da diferença, em que simplesmente existem e vivem como são.
São nestes momentos de afirmação cega e fervorosa que nascem as seitas, sempre reciclando o princípio da teodiceia: “as coisas estão erradas, é preciso purificar tudo, precisamos recomeçar do zero”. Não importa que hajam sempre múltiplos caminhos, a partir de uma determinada torção violenta do pensamento, apenas um deles pode ser, a partir de então, considerado verdadeiro.
Como poderíamos mostrar o quanto isso é estranho? Que recurso mirabolante abriria os olhos de quem fez tanta força para cerrá-los? Como mostrar ao mais fervoroso dos crentes o frescor de cada momento, a imensa virtualidade que o acontecimento encerra em seu próprio acontecer? Talvez a filosofia seja a nossa mais alta aposta, uma espécie de purgante para as ideias que nos intoxicam, pelo menos assim ensinavam os céticos antigos.
Voltemos aos cultos, eles possuem algumas características marcantes: primeiro, líderes carismáticos, apoteóticos e apologéticos, tão certos de si mesmos que fazem nações inteiras tremer; segundo, uma elite que os circunda, financeira ou armada, que põe medo em quem ousa pensar diferente; terceiro, a ritualização arbitrária de traços, marcas e gestos, que os distingue dos demais; quarto, uma séquito de seguidores que acreditam participar da grande renovação da humanidade, um evento catastrófico de purificação e renovação; dentre outras características difíceis de esgotar aqui.
Uma seita é uma busca e, ao mesmo tempo que é uma busca, é também uma fuga. Um culto é a tentativa de viver em um mundo verdadeiro enquanto falseia tudo que não se submete à sua ideia. Mesmo sendo tão contraditórios quanto todo mundo, eles não o percebem, pois excluíram a contradição de seu dicionário de conceitos – e ao fazerem isso, adoeceram do pensamento. Quanto mais dogmatismo, menos pensamento. A filosofia jamais será um culto, porque em seu exercício ela mostra a impossibilidade de isentar o pensamento de suas contradições, e precisamente nisto consiste sua saúde.
Um filósofo ou filósofa sabe bem como é difícil pensar, e por isso nunca submete o pensamento à uniformidade. Ao contrário, filosofar muitas vezes é sentar em ambos os lados da mesa: ser o réu, advogado e juiz de suas próprias ideias. Sartre costumava dizer que é preciso pensar contra si mesmo. Por quê? Ora, porque o pensamento é muito maior do que aquilo que somos capazes de pensar. Ele supera infinitamente as nossas pequenas neuroses e perspectivas. É claro que isso traz angústia, mas com o tempo vamos aprendendo a fazer disso algo interessante.
E mais uma vez voltamos aos adeptos de qualquer seita, eles estão mais que angustiados, estão desesperados, e realmente encontram abrigo nas crenças que avidamente compartilham. O que eles não percebem é que este abrigo é também uma casa apertada, muito propensa às violências domésticas. Eles se escondem lá dentro, procurando segurança, mas não percebem como essa segurança os prejudica.
Ainda assim, por mais coesas que pareçam as ideias, destoar pertence à natureza do pensamento. Novas perspectivas aparecem timidamente, sem fazer barulho, mas encontram um lugarzinho no canto e começam a minar a base que sustenta qualquer crença. Quando paramos para perceber já é tarde demais, as estruturas estão abaladas, e não há alternativa senão seguir numa nova direção.
Sabendo disso, o pensamento filosófico cresce na capacidade de adquirir diferentes perspectivas sem abdicar de nenhuma delas, fazendo um uso inclusivo das alternativas. Assim, ele se faz na aposta de que é possível pensar corretamente de maneiras diferentes, assim como é possível viver bem de modos diferentes. Em outras palavras, a filosofia dá lugar à existência legítima de contrários no pensamento.
Por mais estranho que pareça, a filosofia é uma comunidade de pensamento onde todo mundo discorda uns dos outros o tempo inteiro. O mais importante é perceber que isso não é um problema! A boa ciência é assim também, a diferença talvez esteja no fato de que na filosofia nós não temos uma base metódica que alinhe as concordâncias. Temos apenas uma postura, uma exigência, elevar o pensamento à experiência intuitiva, ao conhecimento impalpável de objetos difíceis de quantificar: o amor, a justiça, a beleza, a existência, o tempo.
Ao contrário de qualquer seita, a filosofia não tem inimigos. É verdade que ela adora denunciar as besteiras, se diverte provocando os sabichões, faz graça com perguntas impertinentes, mas nada disso é por mal. O que realmente interessa é prolongar a conversa, manter aberto o campo do diálogo para averiguar de novo e de novo aquilo que não sabemos ao certo. No fim das contas, a filosofia só não conversa com quem não quem não quer pensar. E se você está disposto a conversar, você não está em um culto.
A despeito de qualquer desejo de expiação, sempre existirão muitos mundos no mundo. A filosofia não trabalha com crenças unificadoras, verdades purificadoras ou respostas mágicas; não possui líderes inquestionáveis, nem argumentos infalíveis. Nem mesmo o princípio de não-contradição é plenamente respeitado. Seu caminho é tortuoso e pode desapontar muitos que prefeririam um percurso bem pavimentado. Durante uma conversa filosófica, o clímax pode ser um “não sei”. Ainda assim, o caminho que leva ao não saber é repleto de saberes sutilmente costurados no tecido da diferença.