No mundo do capital, apenas o trabalho dispensa justificativas. A legitimidade dos diversos modos de viver é condicionada por este único e universal critério: paga as contas? Nossos desejos são filtrados e categorizados segundo a aplicabilidade laboral. Assim, quem não consegue concatenar sua maneira de pensar, desejar e viver com algo que se converta em uma quantidade abstrata de valor para trocar no mercado é automaticamente posto fora da norma.
Existe, é verdade, uma minúscula classe dispensada dessa necessidade, composta por herdeiros, príncipes, pensionistas, entre outros parasitas afortunados. Graças ao trabalho dos outros, eles podem ser extravagantes e viver despreocupados, autorizando seus desejos, afirmando seus valores, ainda que tão toscos. Todo o resto, a imensa maioria de nós, está tão submetida ao trabalho quanto uma bola de boliche em queda livre está sob a ação da gravidade.
Tudo aquilo que somos sofre uma inflexão violenta das forças de organização do capital na forma do trabalho. A inevitabilidade do emprego de nossas forças em prol do lucro alheio é um fato excruciante que nos esmaga contra a parede. Nossa experiência no mundo possui esse limite concreto que nos leva a racionalizar todas as nossas escolhas em função dos números em nossas contas bancárias. Sofremos de uma neurose financeira, e não há muito como evitar. Estamos encurralados, mas não rendidos; parece não haver saída, a não ser resistir.
Há aqueles que abandonam tanto quanto possível o mundo monetário e saem em busca de valores reais. Desprendem-se do dinheiro e correm atrás de outra forma de prover o próprio sustento. É admirável essa capacidade de viver à margem, porque, excetuando o caso de quem nasceu em culturas de resistência, ela requer um abandono radical das estruturas que nos acostumamos a considerar como fundamentais: família próxima, casa confortável, lazer com consumo. Essa saída, no entanto, não parece uma alternativa realmente desejável para a maioria de nós ou, ao menos, ainda não se provou como tal.
Se não estamos dispostos a tamanho sacrifício, o que nos resta então? Ora, o trabalho. Aqui temos mais uma distinção a fazer, porque há uma grande diferença entre os trabalhadores: de um lado, estão os que podem negociar sua entrada no mundo trabalhista, fazendo uma graduação, recusando o subemprego; de outro, estão aqueles que são obrigados pela própria situação de vulnerabilidade a aceitar a primeira oportunidade que surgir, o que muitas vezes acontece ainda na infância.
Para estes últimos, o trabalho é um destino inevitável, que encaram corajosamente, gratos por ter algum meio de sobrevivência, a despeito da humilhação cotidiana. Nesta situação, a questão do prazer no trabalho sequer é colocada, ao contrário, a escolha se dá pelo menos pior. Muitos destes trabalhadores mostram-se bem dispostos a fazer o que for necessário para tornar a vida um pouco melhor. Tendo tanto pelo que se revoltar, acabam muitas vezes por agradecer.
O motivo é simples, nós todos sabemos que, em se tratando de trabalho, sempre pode ser pior. Há dentre nós alguns que simplesmente não suportam trabalhar, não por causa de qualquer falta de caráter ou falha essencial, mas pelo fato de que sua própria maneira de existir não condiz com a lógica do trabalho. Não é difícil perceber como a diversidade de modos de viver é cerceada pelo modo capitalista de viver.
Agora, ao primeiro grupo foi oferecido algum direito de recusa, eles são os que podem refletir sobre a possibilidade de trabalhar com algo que gostam – e nisso se instala uma crise existencial, uma espécie de paradoxo angustiante: como gostar tratando-se de trabalho? O fato é que existe prazer em trabalhar, por mais estranho que pareça. Podemos entender isso partindo do princípio de que existem tarefas que faríamos até de graça, e pode acontecer de nos oferecerem remuneração para executá-las. Isso não significa que trabalhar será inteiramente prazeroso, mas que o prazer com certeza ajuda a encontrar sentido no ato compulsório de vender o próprio tempo.
Costuma-se brincar com o fato de que trabalhar com algo que se ama é eventualmente não amar mais nada. De fato, o problema é que o tempo do trabalho não respeita o do amor. São dimensões incongruentes do envolvimento com as coisas. Imaginem alguém que ama escrever com esmero, pensando o lugar de cada palavra, o ritmo de cada sílaba, a melodia de cada frase – é evidentemente um caso de amor, que termina com o telefonema do editor comunicando-lhe os prazos.
Outra forma pela qual tentamos dignificar o trabalho é ligando-o a uma causa nobre. Vamos a alguns exemplos: exercer a psicologia social, cuidando dos que mais necessitam; entrar na luta política institucional para disputar verbas para ações mais justas; escrever, lecionar, pesquisar, organizar conteúdos para facilitar o acesso à informação e formação crítica. Enfim, são muitas as possibilidades de trabalhar em nome de algo maior do que simplesmente pagar as contas.
A questão é que isso não nos isenta do problema inicial, aliás parece que afundamos nele. Trabalhamos para nos sustentar, mas quanto mais tentamos tornar o trabalho justo, mais precisamos ir contra o capital, o que implica em maior dificuldade para obter remuneração. Ou seja, acabamos nos encontrando, cedo ou tarde, em face de uma exaustiva repetição: trabalhamos mais por trabalhar contra o capital – e às vezes convivemos com crises de consciência causadas pela necessidade incontornável de negociar nossos valores com ele.
Tivéssemos escolhido trabalhar a favor do capital, em qualquer área, o processo seria muito facilitado. O dinheiro está entre aqueles que trabalham para ele, não é grande novidade. Sendo assim, não deveríamos escolher o caminho mais fácil? Talvez, afinal, não seja pecado trabalhar apenas para se sustentar de uma maneira confortável, sem envolvimento afetivo ou militante. Mas será que isso também não tem um custo? Passar boa parte da vida desimplicado de seus próprios valores tem um peso, e esse peso não pode ser desconsiderado.
O desejo de abandonar a luta aparece em momentos de fragilidade, quando estamos exaustos pela carga extra de dar sentido a algo que se esvazia dele pela sua própria lógica de abstração monetária. Ainda assim, é passageiro, sabemos que a mera possibilidade de aliar o sustento a algum valor real é uma grande sorte – o que não muda o fato de que, se escolhemos aliar o trabalho a algo mais do que a multiplicação dos números, precisamos ter consciência do que isso significa: trabalhar mais e ganhar menos.
O trabalho é algo natural. Não foi o homem, muito menos o capitalismo que o inventou. Ele existe desde que surgiram os primeiros seres vivos no planeta em busca de seu sustento. Querer viver sem trabalhar não é da natureza dos seres, a não ser que você seja um parasita! Aprenda a dignificar o seu trabalho e esteja no fluxo do dharma. Agradeça a quem se arrisca e lhe dá a oportunidade de poder trabalhar, facilitando todo esse processo natural.
Não, a maneira como o capital abstrai o valor do trabalho não existe desde sempre.
Uma mentalidade unicamente positiva frente a esse trabalho serve a uma ideologia perversa que mantém as coisas como estão, desiguais e injustas.
Justificar isso de maneira kármica é uma coisa absolutamente nefasta.