Olhar para o céu estrelado talvez tenha sido uma das primeiras atividades especulativas do ser humano. Afinal, o que são aqueles pontinhos luminosos brilhando acima de nossas cabeças? Construções e pinturas muito antigas, com mais de 30.000 anos, tentaram responder a esta pergunta, relacionando a rotação das estrelas no céu com o ciclo das estações na Terra. Estes pontinhos pouco a pouco foram ganhando forma inteligível.
Numa noite de Lua nova, com o céu limpo, podemos ver um total de 6 mil estrelas a olho nu; com uma luneta simples ou um binóculo, objeto extremamente atual, esse número cresce vertiginosamente, e com os telescópios mais modernos esta quantidade beira o infinito, bilhões de galáxias com bilhões de estrelas. Pois bem, como organizar tanta informação? Para fazer isso nós traçamos desenhos no céu com estes pontos brilhantes e recortamos o espaço celeste em regiões delimitadas.
Entretanto, das várias constelações, uma passou despercebida pelos observadores do hemisfério norte, uma muito pequena e singular, brilhante, mas perto demais do horizonte, foi ignorada e depois engolida por outra bem maior chamada de Centauro. Esta situação só mudou quando os primeiros colonizadores europeus começaram a contornar a costa da África e viram estrelas novas surgirem no céu noturno. Neste momento, algumas em particular chamaram a atenção, cinco pontinhos que formavam uma cruz. Estamos falando, é claro, da Constelação do Cruzeiro do Sul.
Mesmo sendo a menor de todas as constelações catalogadas, ela é uma das mais famosas do nosso hemisfério, e foi observada por várias culturas na parte de baixo do globo terrestre. Ou seja, o mesmo fenômeno foi observado e catalogado de maneiras diferentes dependendo da perspectiva. Para o povo Mursi, por exemplo, que habita a região da atual Etiópia, o Cruzeiro do Sul é uma das constelações mais importantes. Isso porque uma de suas estrelas, em particular, chamada Imai funciona como um sinalizador, indicando o início da estação de pesca e da agricultura. Perceber é, antes de mais nada, entrar em relação, e entrar em relação é na verdade traçar relações.
Ligamos os pontos no céu sempre de maneira heterogênea. Um conjunto de estrelas se parece com uma cruz, uma estrela no céu indica o momento de plantar e de pescar. É toda uma teia de sínteses e agenciamentos que começa a ser tecida. Por necessidade ou por admiração, adoramos ligar os pontos. No caso do Cruzeiro do Sul, são quatro pontos, mais um, a intrometida, que confirma que estamos olhando para a constelação correta. Mas não para aí, a importância do Cruzeiro do Sul, para os navegadores portugues estava em mostrar ainda outro ponto, o Polo Cardeal do Sul, ou seja, o ponto fixo no céu onde todas as outras estrelas do hemisfério giram ao redor.
As histórias que contamos não são inocentes e se fazem com os pontos que ligam as coisas umas às outras. Alguns veem um touro, símbolo da fertilidade, outros veem um Leão, e outros ainda um Caçador Gigante. Estas histórias desenham as constelações, que refletem no céu acontecimentos aqui na Terra, mais uma vez, ligação entre coisas heterogêneas. Os primeiros exploradores, por exemplo, nomearam as estrelas do Sul no séc. XV, XVI, com os nomes de seus instrumentos tecnológicos: Microscópio, Compasso, Relógio, Esquadro, Bússola. Mesmo Cruzeiro do Sul, unânime em todas as culturas, para um povo aborígene na Austrália, era ligado com outras duas estrelas e conhecido como constelação da Águia.
Outro fator a se considerar é que as constelações são compostas por estrelas a distâncias absolutamente diferentees, ou seja, estes pontos no céu, que nós olhamos dadqui, só são possíveis de nossa perspectiva. Isso diz mais de nós ou das estrelas? O que percebemos quando percebemos, e o que deixamos de ver? Em outras palavras, o que nos faz ligar os pontos? Os astrônomos indo-europeus não viram a constelação do Cruzeiro do Sul, e os exploradores não escutaram as nomeações dos povos que encontravam pelo caminho, seus olhos estavam fechados para outras maneiras de ver, só tinham em mente as riquezas que buscavam.
A nossa perspectiva não passa então de uma complexa rede de conexões. A partir dela, até podemos concordar com alguns fatos, mas as distâncias físicas e subjetivas se tornam fatores preponderantes para nossa consideração da existência. A palavra considerar, inclusive, significa exatamente isso, pensar junto com as estrelas. Estes pontos luminosos nos servem de orientação no momento em que estamos perdidos em alto mar, porque eles oferecem um ponto fixo, uma âncora no meio do caos. Se o mundo muda como as águas do mar, precisamos de um ponto seguro para ancorar. As estrelas, a consideração, é o entrelaçamento entre aquilo que somos e aquilo que podemos ser e aquilo que fomos, nada mais que uma conexão feita de linhas e cortes. O problema começa quando estas figuras formadas encontram um ponto final, e não permitem as histórias serem recontadas.
Diz o ditado popular que quem conta um conto aumenta um ponto, e talvez a mesma coisa aconteça com a nossa subjetividade, formamos constelações de pensamentos e sensações em nosso céu afetivo. Ainda assim a pergunta permanece a mesma, deveríamos colocar um ponto final nestes ideias ou deixá-las abertas para novas conexões? Quem pode dizer quando é a hora de parar de fazer conexões?
Existem muitos relatos de como a filosofia nasceu, uma delas é contada por Platão e fala de quando Tales de Mileto caminhava pela rua observando o céu estrelado. Em seu assombro e admiração pelas estrelas, ele distraiu-se e caiu num buraco, seria o fim? Não, o pensamento continou e desde então muitos outros se dedicaram a questionar a imensidão do céu noturno e todas as implicações que esta grande pergunta desdobra. A filosofia, assim como as constelações, assim como todo ato de pensar, nunca para depois do ponto final, há sempre mais um ponto a ser considerado.