Na filosofia existem perguntas que já foram repetidas inúmeras vezes: “o que somos nós?” é uma delas. Não foram poucas as pessoas a encontrar boas respostas. Partamos do princípio de que somos seres desejantes, ainda que esta seja apenas uma dentre muitas maneiras de encarar a questão. Poderíamos, é claro, tomar outros caminhos para respondê-la – animais políticos, sujeitos pensantes, feixes de experiência, seres de linguagem e mais -, no entanto, neste bairro nenhuma rua tem saída. Se escolhemos considerar a ideia de que somos desejo, é porque ela talvez nos ajude a pensar o amor e como entender o que é a saudades.
Não faltaram pensadores a sustentar que nós somos seres que desejam, mas há uma dificuldade: nem todos concordam sobre o que significa desejar. Na filosofia francesa contemporânea, há um famoso debate sobre o tema, que se divide em duas frentes que tensionam o conceito: de um lado, a afirmação de que o desejo é, por excelência, desejo pelo que não se tem e, consequentemente, uma espécie de falta inerente ao ser; de outro lado, a ideia de que o desejo é um excesso que se produz a todo momento, decorrente da afirmação de uma potência de vida que antecede qualquer necessidade. Temos aqui, portanto, duas perspectivas diferentes sobre o que é desejar que acabam por alterar significativamente a resposta sobre o que somos.
Se desejar é ser movido em direção ao prazer, mas pela falta, então o desejo se expressa em nossa natureza como um movimento incessante feito em busca de um preenchimento que, em termos absolutos, é impossível, dado o fato de que, por sua própria definição, a carência antecede o desejo. Nesse caso, o amor surge como promessa de completude que, ainda que esteja fadada ao fracasso, se apresenta como uma força que nos empurra a transcender a nossa própria condição: desejamos o outro como maneira de saciar uma ânsia inerente ao próprio ser.
Agora, se desejar é uma força eficiente que constitui nossa existência, se o desejo é o transbordamento de uma vida expressando-se o máximo que pode, então a satisfação não se dá no preenchimento de uma necessidade, mas na fruição de uma concatenação de partes que encaminham o desejo da maneira satisfatória, condizente com a singularidades de cada corpo. Partindo dessa perspectiva, o amor é uma das maneiras pelas quais o desejo se compõe com o mundo: desejamos o outro como parte de um mundo abundante no qual somos mais capazes de nos efetuar.
Seria mais fácil se pudéssemos dizer que uma das teorias está correta e a outra está errada, mas não existe método capaz de garantir essa certeza. Na realidade, desejo e amor são ideias complexas demais para terem apenas uma perspectiva plausível. Tratar dos conceitos como se fossem hipóteses nos faz sacrificar a filosofia em nome da ciência, e não é isso que queremos. Então, o melhor é perceber que a coexistência de visões contrárias sobre um mesmo tema é o que pode nos levar realmente a pensar. Mais do que isso, a diversidade de ideias em tensão é o que nos obriga a realmente pensar por nós mesmos, em vez de continuar a nos iludir pensando que os autores já exauriram os assuntos e que, a nós, basta participar passivamente compreendendo seus escritos.
Voltando ao tema. A compreensão do desejo como excesso, famosa em Deleuze e Guattari, nos permite pensar como toda a falta é, de alguma maneira, um efeito. Se nada falta ao desejo, então a carência reporta a uma consequência de uma organização das relações sociais. Essa ideia nos permite pensar que, no amor, as ideias de carência e completude são uma besteira, isto é, imagens amorosas convencionais que não dão conta do amor como desejo. Se não somos carentes por natureza, então não há porque esperar que o outro nos complete. Assim, quando supomos que a nossa alegria é responsabilidade de um outro, na verdade não estamos fazendo mais do que aterrorizá-lo com uma demanda que não pode ser suprida, afinal, não se trata de uma falta real, mas de um mal agenciamento.
Aliás, a pretensão de completude é um dos pilares que sustenta o imaginário romântico, na medida em que as narrativas sobre o amor seguem uma lógica de antes e depois, de necessidade e satisfação, de ânsia e felicidade. Por esse motivo, quando a suposta falta retorna e o desejo por uma outra pessoa aparece, o novo amor é atribuído a uma insuficiência da relação anterior, como se ela não fosse mais capaz de preencher o espaço que deveria. Derivado do paradigma da falta, a expectativa de completude restringe as possibilidades de relações amorosas à formação do casal exclusivo: se o outro nos completa, então, por definição, não é possível amar mais ninguém. Se acontecer de amarmos mais alguém, isto será visto como falta de amor ao primeiro, que provavelmente não era o definitivo, o melhor, o que se esperava.
Tudo isso faz muito sentido, mas como podemos entender a saudades? Sentir falta de alguém não é ser afetado por uma ausência? Não há por que negar o fato de que o amor às vezes se expressa como uma certa insubstituibilidade, como o que se sente por uma pessoa em específico. Será que este é um ponto cego no conceito de desejo como produção? Uma resposta possível dentro deste paradigma está em Espinosa, que pensa a saudade como presença de uma recordação que intensifica o desejo. Percebam que ele não recorre a nenhuma falta inerente para explicar o desejo pelo ausente, ao contrário, é a positividade da recordação enquanto ação da mente que produz o afeto.
A partir de respostas como essa, podemos continuar pensando que a falta só pode ser atribuída ao desejo posteriormente. Ainda assim, isso não parece nada irrelevante. Nós realmente sentimos falta das pessoas que amamos e talvez isso não permaneça no exterior daquilo que somos. Parece que a saudades é capaz de invadir o campo pleno do desejo e instalar-se ali no meio, entre a tristeza e o amor. Será que, no processo de sua própria afirmação, o desejo não está fadado a retornar como falta? Podemos arriscar uma definição que considere essas duas maneiras de pensar o desejo: a saudade é o desejo por alguém cuja falta encontrou abrigo, tal qual o bicho na goiaba.