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Definir o que é a religião é uma tarefa difícil, homérica (o mais correto seria dizer hesiódica), e até mesmo perigosa. É claro que a definição será incompleta, agradará poucos e irritará muitos. Afinal, é ousado perguntar “o que é a religião?”, vivemos num acordo tácito de que não é algo que se define, é algo que se vive, que se sente. Nos ensinaram a não falar dela, assim como futebol e política, pois são assuntos delicados cuja menção no almoço de família pode causar constrangimentos e mal entendidos. Mas se uma pergunta pode ser feita, então nada nos impede de procurar uma resposta, mesmo que limitada. E se a resposta for filosófica, ainda melhor.

Comecemos pela falsa sensação de segurança que a Etimologia da palavra gera em nós. A palavra religião vem do latim, o verbo religare, que significa “atar firmemente, unir, prender, fazer um laço”. Neste caso, o laço que se faz é entre o humano e o divino, mas em segundo lugar entre o ser humano e aquilo ou aqueles que o rodeiam. Desta forma, podemos descrever o objetivo maior da religião: a comunhão, aliás, outra boa palavra, pois denota a união fraterna e segura entre nós com algo maior. Em suma, a religião busca mostrar, reforçar ou mesmo criar uma ligação com uma força anterior, superior, fundamental e eterna.

Seguindo este raciocínio, podemos dizer que a espiritualidade nasceu junto com o ser humano. Toda religião partilha desta sensação de participação de um todo, que pode ser chamado de Sagrado. Uma força que estrutura o mundo e dá significado a ele. O sagrado como o chão do ser, ou melhor, o fundamento eterno que garante a ordem da existência. Sendo assim, desde o início dos tempos, nós fazemos mais que ferramentas, somos também seres que se interrogam sobre a morte e inventam histórias sobre a vida.

A religião nos deixa atentos à ordem natural, conscientes de que ela é frágil e pode ser desequilibrada. Pensem nos empreendimentos primitivos da agricultura, o excesso ou falta de chuva já eram o bastante para causar muitos estragos. A religião é a busca de regularidade que resulta num bom plantio e numa boa colheita. Enfim, a esperança e o medo se mostram como o adubo que fertiliza todas as religiões pelo mundo.

Eugène Delacroix – Christ on the Sea of Galilee

Deste modo, começamos a perceber que todas as religiões são extremamente práticas. Em outras palavras, os Deuses existem porque precisamos viver, o que torna a religião uma atividade cultural altamente pragmática e estranhamente imanente. Claro, existem deuses criadores do mundo, mas as primeiras religiões não prestavam culto a eles. O que interessava era o mar, a chuva, a semente na terra, a proteção na caçada, a justiça na cidade. Por isso, toda e qualquer cultura delega à religião a tarefa de sustentar e reforçar a existência ordenada da sociedade.

Ou seja, a religião existe para encontrar a conveniência da sociedade com o universo, é isso que podemos chamar de sagrado. Tanto que os ensinamentos da religião, no fim das contas, não passam de bons conselhos de vida: fazer o bem aos outros, ser caridoso, ser justo, ter compaixão, respeitar, perdoar, não matar, não roubar, não mentir. São todos conselhos que a luz da razão alcançaria com facilidade, mas parece que a religião chega antes, corta caminho, e escreve sobre pedra estes mesmos conselhos para uma vida boa.

Ora, mas como fazer para que estes conselhos sejam seguidos e não ameacem a organização social? Aqui a religião começa a encontrar ritos que instituem os ensinamentos religiosos e transformam os conselhos em leis de vida que garantem a paz e a prosperidade daquela cultura. Em outras palavras, para alcançar a vida boa não bastam bons conselhos, é necessário que eles sejam seguidos. E as instituições religiosas se responsabilizam por administrar sanções para aqueles que não vivem de acordo com a lei sagrada, temendo que a desobediência faça retornar o caos destruidor.

Podemos observar como pouco a pouco a conveniência se afasta da simples instrução e passa a dar lugar à obediência. Enquanto a primeira é mais imanente, quase que uma relação direta de causa e efeito, por exemplo: “se você desregular a natureza e for desmedido a vingança será natural e automática”, a segunda é mais indireta, administrada pelas instituições religiosas. Podemos dizer que a obediência trabalha de outra maneira, mais indireta, transcendente e inquestionável: “é assim porque é assim”, dizem muitos religiosos impacientes, “Deus disse, está na bíblia”, concluem eles. Ora, se é assim, quem somos nós pra questionar? Por isso, tudo muda quando Deus deixa de instruir e pede a obediência de seus seguidores como um Rei pede a obediência de seus súditos.

Mas por que Deus disse assim? Não podemos questioná-lo? A onipotência e onisciência tornam suas ordens automaticamente boas e justas? Será que estamos fadados às suas ordens invisíveis? Aliás, onde ele está? Todas estas são questões que não podem ser respondidas se pensarmos Deus como um ser antropomórfico, o pensamento religioso se complica quando tenta explicar filosoficamente aquilo que apreendeu pela imaginação. Estudar Deus pelo questionamento científico ou filosófico é como tentar transformar água em vinho, a religião possui outra maneira de funcionar. Ela é a sensação do Sagrado, o sentimento de que pertencemos a um universo muito superior e uma bússola para nos localizarmos no meio de tudo isso.

Quando a religião perde seu mergulho no desconhecido e deixa de responder às aspirações de sentido num mundo caótico, ela perde sua força e se transforma em uma instituição conservadora, cujo único intuito é conduzir suas ovelhinhas. Estas instituições facilmente se fecham, passam a funcionar em benefício próprio e toda crítica passa a ser vista como uma ameaça. Não faltaram mártires dentro da igreja e críticos fora dela pala lembrar desta falha constante.

Por outro lado, a religião foi a primeira a tratar das perguntas mais importantes da humanidade: Por que o universo existe? Quem somos nós no meio deste Cosmos desmesurado? Como viver de modo mais conveniente no mundo? Qual a nossa ligação com o todo? A religião encontrou boas respostas e foi capaz de costurá-las no tecido social. Ela existe porque o medo e a dor existem, porque a natureza é violenta e a sociedade é injusta, o que faz da perfeita conveniência algo impossível. Talvez por isso o pensamento religioso continue pertinente até hoje.


Referências

  • O Sagrado e o Profano: A Essência das religiões – Miercea Eliade
  • Tratado Teológico Político – Espinosa
  • Duas Fontes da Moral e da Religião – Bergson
  • A origem de Javé – Thomas C. Römer

Como citar

TRINDADE, Rafael. O que é a Religião?. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/04/01/o-que-e-a-religiao/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Maurício Santos
Maurício Santos
6 meses atrás

Este mundo é uma simulação este mundo é uma prisão Quanto mais a ciência estuda o cosmo e a matéria mais ela percebe aquilo que os antigos já sabiam que nós vivemos dentro de um “grande sonho” … Mas se vc tiver a mente correta na hora da morte vc poderá acordar deste sonho
Sempre bom os textos aqui